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“É a minha má atitude que me mantém jovem”


“É a minha má atitude que me mantém jovem”

No mesmo horário, do mesmo jeito, com o mesmo humor, acordo. A água quente, quase escaldante, me desperta com um tapa na cara e me diz:

- E aí, tudo de novo?

O mesmo ritual, o mesmo dia de novo e de novo, de novo, de novo... Dias sem me encarar no espelho e de repente uma porrada... Lá está ele me dando um “alô” ... Um lindo, imenso e brilhante cabelo branco, alojado bem na parte frente da minha juba, como se intencionalmente quisesse chamar minha atenção meio míope.

Por alguns segundo eu congelo e penso comigo mesma “O que tá rolando por aqui?” ... Segundos mais tarde eu olho a iminência da velhice com afeto e gratidão. Olho pra iminência de uma nova vida, nos próximos 30 anos de mim aqui, e reflito sobre como a versão atual de mim recebe esses sinais do tempo com mais amor. Fico orgulhosa do que fui até aqui e penso em como é lindo presenciar a inconsistência e a mutação do tempo.

A nova versão de mim se olhou com mais calma e sorriu pra si mesma. Com um abraço metafísico, abraçou milhares de versões neuróticas e caóticas de mim.

Essa nova versão se olhou e se amou... Mais precisamente, amou o fato de permutar, mudar, reiniciar, revigorar. Como dizia minha abuela “Cada dia aqui é uma vitória”.

Esse sentimento de eternidade  me confortou da mesma forma que o abraço com cheiro de talco e clorofila da minha avó confortava.

Essa nova versão de mim aprendeu nessa pausa do tempo a adorar características minhas que sempre existiram, mas que eu jamais me permiti apreciar, como os cabelos brancos que desde cedo se insinuavam no meio dos meus fios negros, acho que dando sinais da ancestral que habita em mim.

E nesse momento eu consigo entender a revolução por trás disso, entendem? Consigo entender como é libertador desconstruir esse mito da mulher perfeita, que surta com o avanço da idade, com as linhas de expressão, com a pele mais flácida, com a variação de peso, com os seios caídos ou com os benditos cabelos brancos.

 Esse entendimento foi absorvido por mim quando conheci Nadia Vulvokov, interpretada por Natasha Lyonne na genial série ‘Boneca Russa’ da Netflix. Esse caos lindo e delicioso de Nadia, aborda várias questões tão presentes nas nossas narrativas, como o avanço da idade ou o estereótipo criado por uma sociedade majoritariamente dominada por homens da “mulher agradável e perfeita”.

Na série, a personagem Nadia desconstrói todo esse mito criado em torno de nós mulheres e nos mostra uma nova faceta feminina que sempre existiu, mas que foi enterrada por nós durante anos. Trata-se de ser livremente e deliciosamente “desagradável”.

Quando falo sobre essa mulher “desagradável” não falo de ser uma babaca, mas falo sobre a liberdade de ser. Falo da liberdade de transgredir, de amar livremente, de andar livremente pela rua, de ser desbocada sem ser julgada como vulgar ou masculina, de ser mau humorada sem ser taxada de “ mal comida”, “ irritada”, “ louca” e todos aqueles adjetivos que já ouvimos ao longo dos anos.

“É a minha má atitude que me mantém jovem” ... Essa frase de Nadia virou uma chave em mim, me fazendo viajar pela minha narrativa de uma forma dolorosa, mas transformadora.  Eu entrei numa imersão profunda, que me fez refletir sobre todas as vezes em que eu entrei nessa caixinha criada para nós pelo patriarcado porque era mais fácil e conveniente.

Fiquei furiosa por todas as vezes em que me calei mesmo tendo um vulcão de coisas, em plena erupção aqui dentro, prontas para sair. 

Gritei alto com a minha versão de hoje (e de outros tempos também) por todas as vezes em que sofri em silêncio porque eu tinha que aguentar e seguir em frente. Tinha que ser uma “boa menina” como era esperado de mim.

Briguei comigo mesma por todas as vezes em que fui doce, meiga e delicada só porque eu achava que sendo assim seria melhor aceita, seria mais fácil de ser incluída nos círculos de convivência.

- Notas sobre mim: Eu ardo como pimenta malagueta e vocifero desde sempre!

Também disse um lindo, alto e estridente “EU ME LIBERTEI” pra tudo o que fiz por pura obrigação. Eu sempre fui ácida, sempre fui sarcástica e debochada... Lembro que desde muito cedo sempre tive uma opinião forte sobre as coisas em que acreditava. Porém, desde sempre ouvia das pessoas que eu era muito agressiva, muito brava, cara amarrada. Sorri um pouco, diziam!

Por muito tempo eu tive vergonha de ser taxada como “A agressiva”. Eu imaginava que esse era um adjetivo pejorativo e que eu não queria nunca ter associado a mim...  Mas será mesmo que eu sou agressiva? Será que essa agressividade não é somente assertividade?

Os meus 30 anos estão ali na esquina, só esperando o novo ano que se anuncia para colar em mim... E sabe de uma coisa? Eu nunca me senti tão à vontade comigo mesma do que agora. Nunca me adorei tanto como adoro agora. Eu amo minha acidez, amo minha “fama de má”, amo minhas sobrancelhas que são um parâmetro do meu humor e que dependendo da ocasião ficam terrivelmente arcadas como flechas bem afiadas, parecidas com as das minhas ancestrais caboclas.

Assim como aprendi a amar aquele lindo cabelo branco, aprendi a abraçar minha natureza que é selvagem, que grita, que corre, que fala grosso e alto. Eu finalmente saí daquela caixinha que todas fomos colocadas no dia em que nascemos. Cortei as cordinhas do meu titereiro e foi lindo.

Finalmente entendi que tá tudo bem em ser aquela mulher “desagradável”, porque eu finalmente entendi que não há absolutamente nada de desagradável em ser apenas o que eu sou.

Caótica, direta, furiosa, irritada, risada alta, dança descoordenada, batom vermelho como pintura de guerra, oscilações de humor, afetiva, sagaz, irônica, um barril de vinho ambulante, mãe de pets e de plantas, obcecada por máscaras faciais, cheira os livros e prefere aqueles velhos de sebos, pau pra toda obra, porra louca... Eu sou todas essas mulheres e escolhi abraçar todas elas, dar as maõs e dançar descoordenadamente juntas, vivendo dentro do meu barril de acidez e vinho. 

Tem sido lindo até aqui e eu mal posso esperar pelos próximos 30 anos e assim consecutivamente até o fim do meu ciclo aqui.

Um brinde com uma taça de vinho a mim e a todas vocês que mesmo no caos resistem, persistem e existem.

PS: Um brinde especial as minhas amigas Andréa e Marcia por abraçarem/aceitarem minha acidez antes mesmo de mim. Vocês me libertaram. 


Amanda Alves Rodrigues

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