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Vida de cão

Quase todos nós já nos deparamos com situações de vida tão difíceis que parece que algumas pessoas levam uma vida de cão abandonado. Ao escutarmos suas histórias, percebemos que os dramas de suas vidas muitas vezes vêm se repetindo, alcançando gerações anteriores até aonde consigamos explorar. Nem sempre conseguimos escutar sem nos sentirmos afetados de alguma forma com a dor e o sofrimento do outro.

A violência numa família pode estar tão naturalizada que parece não existir outro modelo além desse, o que torna mais difícil sair do ciclo já estabelecido. Algumas pessoas não conseguem sequer identificar as situações violentas, precisando de esclarecimento e de apoio dos familiares e amigos. Muitos não conseguem este apoio e, ao contrário, só recebem críticas, parecendo que provocaram a situação. Precisamos escutar as pessoas sem julgá-las, pois não estamos na pele delas para saber o que sentiram ou como é suas vidas. Na verdade, quem está em situação de violência gasta muito mais tempo e energia tentando evitar a situação ou buscando sair dela. Pessoas que sofreram violência na infância, tem maior chance de não conseguir reagir na vida adulta, não conseguir elaborar uma estratégia para sair, e algumas vezes paralisam quando deveriam fugir. Além disso, a falta de apoio e a crítica são os fatores que mais dificultam uma tomada de atitude, fazendo que os segredos se perpetuem.

Vida de cão é não poder fazer nada diante das situações, por medo, por necessidade, por falta de habilidade, de conhecimento, de encorajamento, o que impede a delação e a pessoa permanece como um cão fiel ao dono que o maltrata. Algumas pessoas, sem poder contar com familiares e amigos, sem emprego, dependendo financeiramente de quem as agride, parecem ter se acostumado e acharem que as migalhas que recebem é o que merecem. É assim, para quem olha de fora, pois muitas decisões são tomadas de forma cautelosa, buscando a proteção para si e seus familiares, tentando evitar o pior. Por causa disso, realizamos grupos de encontro, onde é possível dividir com outras pessoas que já passaram por situações parecidas e perceber que não se está sozinho e que o grupo pode lhe dar apoio. Semanalmente, no quinto andar do Foro central de Porto Alegre, acontecem os grupos reflexivos de gênero (grupos de homens e grupos de mulheres), dos quais sou coordenadora desde 2011, onde são abordados vários temas, incluindo a violência e a equidade nas relações. São espaços de voz, sigilosos e sem julgamento, no qual é possível compreender a dificuldade de sair de uma situação violenta e desenvolver estratégias de proteção. Muitos vêm para os grupos, encaminhados por um Magistrado(a), outros espontaneamente, o que torna o encontro um lugar diverso e cheio de oportunidades de aprendizado, permitindo aos integrantes reavaliarem seu comportamento e a influência da cultura em modelos condicionados de funcionamento.

Nos depoimentos de quem passou pelos grupos, que percebemos o quanto ouvir alguém e poder falar sem julgamento é importante, para estabelecer espaços de confiança e de esperança. Algumas pessoas revelam que somente depois de terem se sentido apoiadas é que conseguiram tomar uma atitude.

Por Ivete Machado Vargas

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