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Ele me aperta, pinica a minha pele e me cutuca o dia todo, como se quisesse impor sua "necessidade" na minha vida.
" Tu tem que usar" me disse a abuela uma vez!
Ele tem hastes de metal, costuras por todos os lados que deixam minha pele carimbada como gado no pasto.
- Mais uma marca feita à ferro e força pra nossa coleção de cicatrizes!
Em casa, a primeira coisa é abrir o zíper do vestido e arrancar, ainda sem me despir, pelos lados mesmo. E então, a respiração presa o dia inteiro enfim sai.
- Soa familiar pra vocês? (...)
E então veio uma pandemia e as nossas " obrigações" enquanto mulheres ( ao menos é o que nos dizem desde sempre) perderam um pouco de sentido (risos).
Afinal, o motivo de usarmos o famigerado sutiã além de deixar os nossos seios " alinhados" e empinadinhos como esperam que eles sejam, é para evitar que Deus defenda alguém veja nossos pecaminosos mamilos.
"Oi liberdade!", disse eu naquela terça-feira, 11h da manhã, com os meus seios livres, soltos e arejados.
Pensei por um instante " É a vida que pedi às Deusas"... Afinal, qual mulher não se identifica com a liberdade que é a sensação de estar sem essa amarra que é o sutiã.
Eles são lindos? E como! Tenho uma gaveta cheia de modelos lindos, meia-taça, rendados e com frufrus, mas será que foram pensados para serem funcionais? Ao menos para nós, obrigadas a conviver com eles desde sempre?
Em breve pesquisa descobri que a peça surgiu da ideia da jovem nova-iorquina, Mary Jacobs, que se sentiu revoltada com o uso do espartilho de barbatana, extremamente desconfortável e, então, teve a ideia de criar o protótipo do sutiã.
Vejam bem, o sutião foi uma alternativa ao espartilho ( que prefiro nem me estender, mas que é uma espécie de instrumento de tortura socialmente aceito, em minha humilde opinião)... Percebem o paradoxo?
Lembro que enquanto meus seios cresciam e eu tentava negar o fato de que eles estavam surgindo, ouvia minha avó me dizer que eu tinha que me acostumar a usar sutiã, porque meus seios poderiam ficar à mostra ou flácidos ( Se eu soubesse que um dia eles ficariam flácidos de qualquer forma, teria me poupado anos de obrigação). Confesso que nunca entendi muito bem o problema nisso, mas, afinal, o que eu sabia com 11 anos de idade não é mesmo?
Então um dia, voltei chorando para casa porque ao abaixar para pegar a bola de vôlei na escola um colega viu meus seios e fez disso motivo de piada.
Ali eu entendi que o corpo feminino é de todo mundo, menos nosso!
Em casa, no colo da abuela, ela me disse " Viu minha filha, a avó bem que tentou avisar. Guri é assim". Obviamente que entendo que sua intenção foi a de me confortar, mas isso ecoa em mim até hoje. Afinal, por que eu deveria sentir vergonha dos meus seios soltos? Por que eles eram motivo de piada ou sexualização? Por que diabos os meus mamilos eram um problema?
E então tinha a minha mãe, aquela força da natureza, que sempre soltava a sua frase icônica " Foi pra isso que queimamos os sutiãs?" a cada despautério do patriarcado como esse e tantos outros que fui colecionando de lá pra cá.
E foi nesse momento que tive o primeiro contato com a simbologia do sutiã. Entendi que, embora aquela fogueira de sutiãs lindamente feita pelas " netas de todas as bruxas que vocês não conseguiram queimar" fosse uma imagem em tempo real que representava as demandas das feministas da época, os nossos aprisionamentos apenas mudaram de roupagem.
Exemplo é que até hoje somos forçadas a usar o maldito sutiã, porque caso contrário os rótulos se amontoam. Relaxada, preguiçosa e por aí vai. Mas afinal, por que é tão importante que usemos um sutiã? Qual a real intenção por trás disso? Percebem que é mais uma forma de controlar nossas escolhas, baseado em padrões estéticos que foram feitos para agradar aos homens? Um peito empinado, um bumbum durinho e por aí vaí.
Com a Pandemia de Coronavírus, apesar de nos vermos confinadas em casa, também pudemos experimentar o gosto da transgressão e da liberdade de ser ser/estar. Ouso dizer que quase todas as mulheres finalmente se livraram da obrigação de usar um sutiã todos os dias.
Certamente também tive meus momentos de adaptação... Passei os primeiros dias de home office sem sutiã, largada mesmo... Após, veio a fase ' Produtiva', e eu criei uma rotina e, pasmem vocês, o sutiã estava na minha lista. Banho logo ao acordar, colocar uma roupa confortável e lá estava ele, o meu sutiã, seja o convencional ou o esportivo.
E aí veio a fase de aproveitar esse momento e me desprender. Da escova no cabelo, do salto alto todos os dias, da maquiagem no rosto e do sutiã.
Como todos os processos, essa liberdade tão nova pra mim precisou de um tempo, afinal fomos ensinadas desde sempre que precisamos estar constantemente alinhadas que, ao experimentar a possibilidade de ficar livre, soou até errado. Pode isso gente?!
Ao mesmo tempo, eu passei a praticar o exercício de me olhar sem me postar no meu " melhor ângulo", sem me ajeitar, encolher a barriga etc. Passei a me ver despida de tudo: Das roupas e dos medos. E eu vi alguém que eu não conhecia ou que tinha se perdido lá atrás, quando os meus recém nascidos seios foram ridicularizados por essa estrutura social machista que ensina os meninos que os seus corpos são livres, enquanto os nossos são públicos.
Sabemos que um sutiã, um batom, um salto alto ou qualquer outro símbolo de "feminilidade" são utilizados como expressão - ou quebra de conceito- palpável das demandas trazidas pelas feministas de todas as gerações. Inclusive, acho arbitrário ter que abdicar de ser "feminina" para ser feminista, entendem? Como se fossem coisas opostas, proibidas de coexistirem... Mais um exemplo de um aprisionamento caricato criado pelo patriarcado.
Caberia aqui a discussão sobre o conceito do que é ser feminina, mas deixemos para uma próxima.
No entanto, cabe uma breve elucidação... Minha mãe era feminina dentro de uma cadeia masculina, com colete de agente penitenciária e com a boca e unhas vermelhas.
Minha avó era feminina com seu cheirinho de alho/cebola, bermuda de malha e camisetão de política ( daqueles que todas as avós têm), sabão em pó e perfume Alma de flores.
Mas, meu ponto de debate aqui é como nós ainda nos impomos a seguir nos aprisionando de várias formas. Seja ao usar um espartilho para apertar nossa silhueta, o que muitas pessoas pseudo famosas disseminam em redes sociais, um sutiã mega apertado,que promete levantar tudo, uma (ou mais) cinta compressora - em todos os sentidos - litros de silicone ou preenchimentos/harmonizações faciais. A lista é longa e nosso processo de libertação também.
Problematização: Por que os seios de uma mãe que amamenta em público ou os seios naturalmente flácidos de uma mulher incomodam mais que o fato de vivermos hoje numa ditadura do rosto perfeito, partes íntimas perfeitas, barriga cirurgicamente modificadas para serem definidas, harmonizações faciais etc?
Fica o convite para a minha/ nossa reflexão.
Agora, que tal todas juntas incendiarmos uma pilha enorme de sutiãs, restrições, medos, inseguranças e anos de opressão?
Até a próxima, irmãs!
Por Amanda Alves Rodrigues
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