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Territórios, espaços e cárceres

Territórios, espaços e cárceres

Marlene Neves Strey

Em texto anterior (As mulheres e seus espaços violados), escrevi alguns fundamentos da Teoria do Espaço Consciente (Burlae, 2004). Agora, escrevo para discutir acerca dos espaços violados das mulheres propriamente. Segundo essa teoria, são três os espaços sobre os quais devemos ter consciência enquanto mulheres: os espaços corporal, pessoal e cognitivo.

Esses três espaços podem ser considerados como territórios que protegem aquilo que somos enquanto pessoas. Certamente esses espaços não são separados entre si na medida em que somos um todo que se movimenta e se transforma ao longo da vida. Eles interagem, mas cada um deles tem características que lhe são próprias.

Inicio com o espaço corporal, que é o nosso corpo humano físico e que circunda a energia emocional. Começando pela pele e adentrando em tudo o que a pele protege, órgãos, ossos, os diferentes sistemas que sustentam a vida. Os diferentes orifícios e sentidos que permitem nos comunicarmos com o nosso meio ambiente imediato. Esse é, talvez, o território mais visível, tendo em vista que é por meio dele que conseguimos desenvolver a ampliar nossos outros territórios. O espaço corporal é constantemente invadido nas mulheres que sofrem violência de gênero, violência doméstica ou violência familiar. Nas guerras, a invasão dos corpos das mulheres costuma ser simbólica da invasão dos territórios inimigos. É ser uma tática milenarmente utilizada por exércitos que lutam entre si, não só nas guerras antigas, mas nas guerras atuais como vemos constantemente noticiado pelos meios de comunicação. Um exemplo disso é o que passa no Sudão do Sul, como denuncia a Anistia Internacional ao mostrar que a “violência não vem só de tiros e bombas: o estupro faz parte da rotina de milhares de mulheres” naquele país. Podemos dizer que, em certo sentido, isso também faz parte da vida das mulheres brasileiras e, talvez, de mulheres de qualquer nacionalidade em qualquer lugar do mundo.

O espaço pessoal é aquele que circunda o corpo e que varia de acordo com o indivíduo, a cultura, a raça, a classe e o gênero. É aquele espaço por onde a pessoa circula em casa, na rua, no trabalho, por onde quer que esteja ou ande. É um espaço muito dinâmico e que se transforma na medida em que as pessoas vão transitando e se movimentando pela vida afora. Nem sempre as invasões de espaço pessoal são percebidas, pois dependendo, por exemplo, da cultura, as mulheres, por exemplo, parecem não ter espaço pessoal nenhum autorizado. Quando isso acontece, são constantemente invadidas e aprendem a ter medo de buscar ampliar sua circulação, seus direitos de ir e vir, de evitar aproximações não desejadas. Em lugares violentos, os espaços das mulheres são cada vez mais cerceados, vigiados. Para movimentar-se, necessitam autorização, monitoramento, exatamente como se estivessem em uma prisão.

Por fim, o espaço cognitivo, que é o espaço dos processos psicológicos, certamente diferente dos outros dois, corporal e pessoal. Aí estão a capacidade de obter informação emocional, racional ou de outro tipo. De processa-la e formular reações. É nesse espaço que acontecem as invasões e violências psicológicas, que não deixam marcas na carne como a violência física, mas que são extremamente daninhas para a autoestima, a visão que a pessoa tem sobre si mesma e sobre o mundo. Nos casos de violência de gênero contra a mulher, costuma ser muito difícil comprovar, em caso de denúncia, a violência psicológica, aquela que invade o espaço cognitivo. Por outro lado, podem nem chegar a ser vista como invasão ou como violência e, muito menos denunciada. Por exemplo, os comportamentos verbais violentos, quando realizados por pessoas estranhas na rua, que chamam uma mulher de “barbeira” no trânsito, podem ser inócuos depois do primeiro momento, mas, escutar xingamentos e ofensas cotidianamente ditos pela pessoa amada, isso é extremamente invasivo e perturbador. Essas invasões não necessariamente são explícitas, podem ser feitas de maneira sutil por julgamentos de valor, culpabilização constante de tudo o que não dá certo, interromper a palavra, a agressividade passiva. Todas essas invasões às vezes não são muito evidentes, mas costumam calar fundo no estado psicológico de quem as sofre. Aqui é necessário fazer um esforço maior para reconhecer que as normas culturais criam papéis nos quais o espaço cognitivo das mulheres não é diretamente seu, como no caso da esposa, dona de casa, que necessita ser sustentada financeiramente pelo marido. Isso pode induzir a uma certa submissão ao que o provedor financeiro deseja ou institui. Na vida profissional, isso acontece seguidamente, na medida em que as mulheres exercem cargos ou funções que são subalternas a posições masculinas. Para garantir o emprego, muitas vezes é necessário submeter-se às ordens de um homem e também aguentar o assédio moral ou sexual.

Para Burlae (2004) é assustador pensar quão frequente é a invasão dos espaços das mulheres e os cativeiros em que muitas vivem. Violência doméstica, estupro, violência sexual, assédio de todos os tipos, expectativas irracionais sobre papéis e deveres, são apenas algumas possíveis formas de violência que as mulheres vivenciam no seu dia-a-dia. Para se sobrepor a isso, primeiramente é necessário que as mulheres aprendam a estar conscientes que, numa cultura patriarcal, os espaços, inclusive seu próprio corpo, são possessões que nem sempre estão ao seu próprio dispor. A partir disso, podem tornar-se mais conscientes do que fazer, a fim de libertar-se, ampliar seus horizontes e conquistar uma vida mais plena.

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