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"Talvez a sua trajetória agora seja só sobre você!"


Outro dia li esse post que me bateu como um tapa " Em algum momento, dentro de cada linhagem, nascerá uma alma que escolherá levar a cura aos seus antepassados".


Eu, que interpreto tudo como um sinal místico do universo (o ascendente em peixes batendo cada vez mais), achei simbólico que a primeira coisa que me apareceu no instagram saindo da terapia fosse isso. Senti que todas as lágrimas de redenção que tenho chorado nos últimos meses não são somente minhas, também são de todas aquelas que não tiveram esse direito.

- Eu abracei cada uma delas naquele momento e pedi, quietinha naquele uber, que elas também me dessem um abraço metafísico!

Nossa cura é mútua!

"Talvez a sua trajetória agora seja só sobre você!" foi algo que ouvi na terapia e isso me impactou absurdamente, afinal, pra quem cresceu marcada pelas dores do machismo e do racismo se sentir digna de perdão é algo assustador. Eu tenho acessado partes minhas que pareciam estar curadas, mas que na verdade nunca foram cuidadas para que pudessem se curar. Quando comecei a mergulhar em mim, a primeira coisa que eu percebi é que eu tinha uma necessidade muito grande de performar o tempo todos e pra todos. Performar força, coragem, segurança...

A partir disso, eu comecei a tentar entender a origem dessa performance constante e eu esbarrei no esforço descomunal que todas as minhas ancestrais tiveram que fazer pra sobreviver.

Explico: Crescer numa família de mulheres-Baobás, com vozes-trovão, foi enriquecedor, mas também reprimiu em mim muitas emoções que sempre foram tidas como pejorativas. Hoje eu entendo que ser super sensível e emotiva é o que me torna especial, é meu super poder. Mas foi preciso uma vida inteira de armadura, testa franzida e choro engolido pra entender que aquela não era eu de verdade. Aquela era a minha versão pra guerra!

- A guerra acabou e eu quero RESPIRAR!

Hoje, mais velha, eu consigo entender que todas nós performamos condutas que foram necessárias pra que pudéssemos sobreviver. E olha, não tem sido fácil entender que todas nós enterramos nossas versões genuínas pra ser quem precisávamos ser. Tá tudo bem, fizemos e fazemos o melhor que podemos!

Mas, embora eu me console o tempo todo, eu também sinto muita pena por mim e por todas as mulheres que vieram antes de mim... Tenho entendido que esse sentimento de inquietação que me consome é, na verdade, o sopro de todas as minhas ancestrais... É como uma ventania que me sacode pra vida, pro amor, pra mim e pra tudo o que eu sempre quis, mas nunca pude fazer, afinal, eu tinha que ser mais uma mulher-Baobá como todas as mulheres da minha família.

Confesso a vocês que quando finalmente me dei conta de que eu nem sabia quem eu era aos 32 anos eu surtei, chorei, buguei. Afinal, como alguém passa 32 anos sem se conhecer? A grande verdade é que eu precisei passar por uma grande ruptura, que foi a perda da minha mãe, pra finalmente apreciar a dádiva que é estar viva. Eu precisei perder o meu senso de direção pra finalmente correr pra quem eu sou.

Bancar tudo o que eu quero sem o peso de ter que ser forte o tempo todo é algo que me assusta, afinal eu fui "programada" pra lutar o tempo inteiro!

Essa jornada que é só minha, agora, é algo que me apavora e anima, sendo super sincera... É como não ter mais a minha bússola. É andar por esse caminho sem ela, encarando essa nova jornada como o maior desafio da minha vida.

Agora sou eu por mim mesma, bancando tudo o que eu quero, abraçando cada parte de mim, desde a mais bonita a mais feia, desde a mais corajosa a mais medrosa. E sabe o que eu descobri com esse mergulho? Que na verdade a minha mãe teve muito medo em vários momentos, assim como eu. Ela também sentiu o peso da linhagem recair sobre ela, também sentiu que vestir a armadura era a única maneira de sobreviver. Ela também sentiu que precisava honrar as renúncias da mãe dela. E pensar nela (e nas minhas avós) dessa forma desnuda dos "super poderes" tem sido um reencontro tão lindo e honesto. É como me reconhecer a partir desse encontro com elas, mas também a minha maneira de curar uma legião de mulheres que não tiveram direito ao lado mais lindo das suas existências, que é o abraço da sua natureza.

Eu fecho os olhos e penso na minha avó materna com tanto amor, mas também com tanta pena por não ter tido o poder de beijar cada cicatriz dela... Queria ter dito que eu amava quando ela falava com a voz suave e aguda, era como ver uma avó diferente, sem armadura. Apenas ela. Eu queria ter dito que queria conhecer melhor essa avó suave, vulnerável, medrosa, assustada, melancólica.

Eu pensei muito na última vez que eu a vi com vida. Ali, naquele quarto de hospital, flanando entre o astral e o terrestre, nossos olhos se encontraram e, por aquele breve momento, eu pude ver um fragmento da mulher doce que ela era. Foi um reencontro de nós duas enquanto ela se preparava pra virar estrela... Eu choro ao pensar nela dessa forma porque cada parte de mim queria que ela caminhasse por uma estrada coberta de flores. Queria que ela arrancasse cada pedaço daquela maldita armadura e se banhasse nas águas de Osún.

Acho que no final ela pôde ser mais ela e menos guerreira. Pode se banhar do amor que veio dela e gerou todos nós. Ela foi ela no final!

- De alguma forma eu sinto que hoje é exatamente lá que ela está, nas águas de Osún, sendo a avó suave que eu sempre soube que ela era!

E quando penso nesse mal estar, eu sinto que grande parte do nó que aperta a minha garganta vem da angústia que as abuelas sentiram, mas também do nó que sempre apertou mamãe... Eu sinto que a armadura dela se fundiu com a versão de vestidão/hippie/louca/livre. Chegou num ponto que uma não sabia mas existir sem a outra. Em alguns momentos, a armadura queimou o corpo dela a ponto de queimar. Queimou tanto que ela aprendeu a viver com a dor - e pior de tudo - não demonstrar o quanto doía - e ardia - !.

" Tu não acha que ela sentia tanto medo quanto tu sente? Tanta insegurança quanto tu?"

Foi isso que a minha psico me disse na nossa última conversa e aquele questionamento dela abriu um milhão de abas com memórias... Eu sinto que eu a coloquei num lugar canônico de super poder, super heroísmo, de desumanização mesmo. Eu não conseguia enxergar o medo, a angústia, a tristeza, a insegurança. Tudo o que os meus olhos treinados a la amazona conseguiam ver era a mulher-Baobá, a força, o destemor, a desenvoltura, a risada trovão.


Mas quanto disso não era medo travestido de força? Quanto disso não era uma atriz interpretando um papel árduo só porque foi ensinada a não se despir da armadura?

E quando eu penso nisso eu sinto que eu também vesti a mesma armadura por toda a minha vida ao ponto de também me desumanizar. Eu também performei só força, coragem, choro pra dentro e quando eu a perdi eu não sabia mais quem ser, pra quem performar, pra quem mostrar toda a minha destreza.

Depois de todos esses anos chorando pra dentro " como uma vencedora", eu entendi que quando eu choro por ver algo bonito, por ouvir uma música que me remete a um bom sentimento, é só um acúmulo de lágrimas que ficaram anos a fio represadas... Eu sinto que cada lágrima pesa porque vem carregada das lágrimas de toda uma linhagem que não teve direito ao doce, ao leve, ao feliz. Todas elas tiveram que vestir suas versões de guerra e passaram uma vida inteira se negando, se enterrando, se escondendo porque o legado que foi passado de geração pra geração foi esse legado de força descomunal.

Esse nó que eu sinto apertando minha garganta, se enrolando no meu pescoço como uma cobra que me enforca é, na verdade, um milhão de vozes que encontraram na minha voz um amplificador.

Eu estou entendendo que não precisa ser árduo, amargo, difícil, espinhoso pra ter sentido, sabe? E é completamente absurdo ter que rever toda uma narrativa que foi escrita cheia de espinhos.

Outro dia eu falava com o meu esposo sobre como todos fomos criados com uma habilidade específica... Eu confesso que eu nunca soube qual era a minha habilidade e isso era algo que eu escondia a sete chaves, afinal, um Baobá tem que se manter majestoso. Me dava medo pensar que teria que viver na narrativa da dor e da exaustão pra me sentir validada. Até que num belo dia, numa das nossas conversas - que são minha salvação - eu disse pra ele que sentia que de alguma forma a vida se encarregava de nos mostrar o nosso caminho e habilidade (s). Não importando se vai demorar mais, se vai ter mais chão pela frente. Não importa! O que realmente importa é que vai chegar o momento em que o desconforto vai se sobrepor e a tua habilidade, isto é, aquilo que te foi concedido como teu super poder vai surgir.

Eu entendi que ser apaixonada pelas coisas e pessoas é uma das minhas habilidades. Ser emotiva, intensa, sensível e doce também são super poderes. Demonstrar o meu amor pelas pessoas que são importantes pra mim é um super poder. Escrever é meu super poder porque eu escrevo o que eu sinto, o que me toca, o que me motiva. Em algum lugar alguém vai se identificar com isso.

É o que me basta!

Eu sinto um alívio ao chegar no final dessas linhas que escrevo com os olhos transbordando de tanto amor, respeito por mim e pelas minhas emoções... Tem sido lindo mergulhar nesse mar de mulheres que me olham lá do fundo, naquela água esverdeada, repleta de flores e de amor, buscando cura!

Quando eu me permiti mergulhar em mim - e em todas elas - eu entendi que todas esperaram pela minha cura pra que elas também pudessem se curar.

"Talvez por isso tu seja tão afetuosa com as mais novas" foi o que meu esposo me disse numa das nossas conversas... Eu vou além e digo que a minha missão não é curar só as nossas ancestrais. Vai além disso!

Eu sinto que as ancestrais me puxaram para essa água esverdeada no intuito de me mostrar que tudo o que elas sempre quiseram foi aquele caminho repleto de flores que eu vislumbrei pra minha abuela. É naquele lugar mítico que elas descansam. E é pra esse lugar mítico que todas nós vamos caminhar até repousar!

- Eu desejo um descanso doce pra vocês, ancestrais! Prometo que seremos aquela versão esmagada pela armadura daqui pra frente!

Até a próxima, irmãs!


Por Amanda Alves Rodrigues

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