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Talibã e a difícil missão de ser mulher! Parte II


Diante de tudo o que tenho visto nos últimos dois anos e nos últimos dias, não posso deixar de pensar na distopia não tão distópica criada pela genial Margaret Atwood, chamada ' O conto da Aia'. No enredo, um grupo fundamentalista religioso inicia seu projeto de sociedade estruturado nos " preceitos religiosos" para criar um mundo em que os homens podem governar como bem entenderem. Assim como tem feito o Talibã, na distopia Atwoodiana, esse grupo inicia seu projeto de sociedade de forma sorrateira, dissipando aos poucos os direitos humanos, sobretudo das mulheres.

Segue passagem do livro publicado nos anos 80 por Margaret Atwood, mas que dialoga de forma assustadora com a nossa realidade:

“Agora eu estou acordada para o mundo. Eu estava dormindo antes. Foi assim que deixamos acontecer. Quando aniquilaram o Congresso, não acordamos. Quando culparam terroristas e suspenderam a Constituição, também não acordamos. Disseram que seria temporário, mas nada muda instantaneamente.”

Agora, um pouco mais calma, gostaria que por um momento todas vocês fechassem os olhos e imaginassem...

Acordar e não poder sair de casa sem a presença de um familiar homem;

Chegar ao seu local de trabalho e descobrir que foi substituída por um homem;

Ter que casar, ainda adolescente, com um homem desconhecido por você;

Ser obrigada a pintar as janelas de casa para que ninguém olhe para o lado de dentro;

Ter que se cobrir por inteiro, usando uma burca que só deixa seus olhos de fora;

Ser apedrejada em praça pública caso seja rotulada como " Adúltera" ou " Indecente";

Ter que deixar de estudar, sair com os amigos, ir ao cinema, à academia, ao teatro apenas porque é MULHER;

Viver num mundo em que você não significa nada além de um corpo capaz de reproduzir e dar prazer.

Agora abram os olhos, respirem e reflitam sobre como todas essas coisas absurdas irão fazer parte da realidade das mulheres, crianças e comunidade LGBTQI+ Afegãs com a tomada desse grupo terrorista, extremista e fundamentalista que utiliza a palavra de " Deus" de forma arbitrária para oprimir, humilhar, matar.

Um adendo: Não podemos e não devemos ser acometidos por um PRÉ-CONCEITO religioso e partir do princípio de que todos os mulçumanos seguem a linha perversa do Talibã. Sabemos que trata-se de uma pequena parcela de pessoas que fazem dos preceitos religiosos munição para sua livre e maldosa interpretação.

Essa realidade que agora parece tão distante para nós, não é tão distante quando pensamos que vivemos momentos sombrios na nossa democracia, tão jovem e frágil. Vivemos sob o espectro da incerteza, do negacionismo que ceifou vidas seja pela Covid-19, seja pela opressão de gênero.

Afinal, nunca antes presenciamos uma ameaça tão possível aos direitos arduamente adquiridos pelas mulheres - e todas as classes minorizadas- como hoje.


Será que aquele cenário distópico, pensado com base na sociedade dos anos 80 por Margaret Atwood, de fato é tão fugaz e impossível para nós?


Percebem que mesmo que a sensação de "liberdade" tenha um gosto doce nos nossos lábios, nós não somos livres, não temos o controle dos nossos corpos, das nossas vidas?


Audre Lorde, grande potência do feminismo interseccional, pontua que "Não serei livre enquanto alguma mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas" .

As correntes das nossas irmãs afegãs são cobertas por burcas, barbas e por um regimento baseado numa teocracia reacionária, sem retórica, vazia de Dogmas verídicos e encharcada por um primas míope, violento e egocêntrico.

A pandemia de Coronavírus nos fez enxergar o mundo através de imagens.

Enxergamos, num primeiro momento, um mundo reduzido às telas dos celulares, televisores e computadores. Vimos a imagem da humanidade reduzida a números nas estatísticas, nas postagens de alguém que perdeu um familiar para a Covid, nas valas dos cemitérios que tiveram que ser ampliadas.

Vimos, mais além, a imagem da fome, do medo, da miséria e da opressão. Filas quilométricas à espera de ossos, auxílios emergências, leitos hospitalares, paz, dignidade.

Vimos a imagem de mulheres, chefes de família, lutando por um emprego, por um amanhã, por uma vida melhor.

Temos agora a imagem da luta feminina por direitos humanos que são básicos, mas que desde que o mundo é mundo são os primeiros a serem revogados para nós.

A imagem que temos agora nos é transmitida através dos olhos escondidos da mulher afegã que também são os nossos olhos, aqui dos trópicos.

Temos a imagem do medo nos olhos da menina que sabe que, daquele momento em diante, o seu destino será escolhido para ela e não por ela.

Temos o medo da mãe que, numa tentativa de prover um amanhã a sua cria, entrega-o ao um estranho, por um muro, no meio do caos.

O futuro será feminino! Ecoa nas nossas cabeças e transborda nas lágrimas que caem dos olhos que assistem impotentes a essas imagens.

A imagem que temos do futuro é tão sombria e escura quanto o véu que cobre o rosto, os sonhos e os direitos da mulher afegã.

E essa imagem sombria precisa servir para nos mover, assim como têm feito aquelas mulheres corajosas que com os punhos cerrados gritam em Cabul que irão resistir e lutar como só uma mulher sabe lutar.

Elas não voltarão para as salas escuras, cobertas por uma janela pintada, para que o mundo não as enxergue.

O futuro é sim FEMININO e a luta delas deve ser a nossa luta. A voz delas deve ser a nossa voz, a resistência delas também ter que ser nossa!

“Com cada cidade que cai [sob controle do Talibã], corpos humanos colapsam, sonhos colapsam, história e futuro colapsam, arte e cultura colapsam, vida e beleza colapsam, nosso mundo colapsa", escreveu Rada Akbar no Twitter. "Alguém, por favor, pare com isso."

Alguém, por favor, pare com isso, é o eco que escutamos, como súplicas e rezas que fazemos em nosso íntimo.

Alguém, por favor, pare com isso! É o que diz os olhos cobertos por lágrimas e medo da mulher que corre atrás daquele avião em movimento.

Alguém, por favor, pare com isso! É o que os meus olhos molhados suplicam enquanto a água cobre meu colo, minhas mãos e o meu teclado.

Alguém, por favor, pare com isso!


Por Amanda Alves Rodrigues


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