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Sobre o privilégio que é menstruar com dignidade!


Era uma noite como tantas outras que tive na casa dos meus avós paternos. Antes de dormir, a apanhadora - e contadora - de histórias que sempre habitou em mim sentou-se ao pé da cama de minha avó paterna, Neli, para indagar sobre a sua vida antes de ser minha avó.

Ali, sentada na sua cama, indaguei sobre a sua juventude e de como veio do interior para cá, de como e quando casou, de como era na sua época de adolescente, já que eu também estava passando pela minha adolescência. Num determinado momento, com a voz embargada e os olhos molhados, refletidos pela luz baixa do seu abajur de porcelana, dado pela patroa, Vó Neli me contou que na sua época não havia muita escolha, que não escolheu quase nada da vida que se apresentou a ela... Nem o próprio marido foi ela quem escolheu. Mas, como ponderado por ela, teve a " sorte" de encontrar "Um bom homem".

Não bastasse o incômodo que senti ao saber disso, senti também pena e vontade de a ter conhecido antes, numa outra época, sabendo o que sei hoje. Eu queria salvá-la!

Depois de tantas histórias, perguntei como tinha sido sua primeira menstruação? Se sua mãe lhe “preparou” para isso? Se ela estava ansiosa para o tal grande dia? Foi nesse momento que o termo " Pobreza Menstrual" me encontrou sem que eu pudesse imaginar que um dia ele retornaria a mim. Vó Neli me contou que na sua época e com sua condição financeira, não havia a possibilidade de usar um absorvente higiênico, então ela fazia retalhos de tecidos velhos e os dobrava várias e várias vezes para usar como absorvente... Contou que escondia dos homens da casa as suas "regras" e que lavava escondida os panos que serviam como absorvente.

Essa história que me foi contada ali pelos meus 13 anos voltou a mim agora, com 30 anos de idade, quando fui surpreendida - ou talvez nem tanto - com o veto presidencial ao projeto de lei 4.968/2019, de autoria da deputada federal Marília Arraes (PT-PE), que prevê a criação do Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual, tendo como principal medida a distribuição gratuita de absorventes para estudantes femininas de baixa renda e mulheres em situação de rua. Diante do veto presidencial a essa medida específica, diversas entidades do terceiro setor e lideranças políticas, majoritariamente femininas, se articularam para derrubar o veto, porém sem sucesso, como era de se esperar.

Esse veto presidencial é apenas mais uma demonstração do quanto as demandas femininas ainda são minimizadas nas esferas parlamentares, bem como reforça o fato de que a presença de lideranças femininas no cenário político brasileiro apesar de potente, ainda é insuficiente. É insuficiente porque ainda vivemos num mundo predominantemente masculino, logo, questões como a menstruação feminina não passa de " Mimimi de feminista", não é mesmo?!

Nessa linha, reforço aqui o entendimento de que quanto mais mulheres comprometidas com as demandas femininas estiverem em cargos de liderança e atuação política, mais projetos voltados a questões tão essenciais como a distribuição de absorventes de forma gratuita serão efetivados.

Do mesmo modo, trago o recorte do machismo estrutural que é forte e consistente no nosso país, a tal ponto que temos a distribuição de camisinhas - que também é de suma importância- gratuita nos postos de saúde, mas não temos a distribuição de absorventes. Percebem o paradoxo?

Essas demandas ignoradas e minimizadas, refletem um Brasil que possui números alarmantes quando falamos do descaso do Governo com as políticas públicas, sobretudo as que contemplam as demandas femininas. A falta de estrutura e de acesso a itens de higiene, assim como a falta de conhecimento sobre o ciclo menstrual, pode trazer consequências graves para a saúde física e emocional das mulheres, sem contar que contribui para alargar ainda mais os abismos sociais e de gênero, tão presentes na nossa sociedade.

É primário que as mulheres tenham o direito de menstruar, de ter cólica, de tomar aquele remedinho conhecido por nós, privilegiadas. E por qual motivo essas demandas ainda não são vistas como prioridade? A quem interessa essas disparidades?

Importante ressaltar que a questão da Pobreza Menstrual sempre existiu, mas nunca foi abordada. Conforme Vanessa Lima, fundadora da ONG Mãos Invisíveis e pesquisadora do Instituto Nacional dos Direitos Humanos da População de Rua (INRua), é praticamente impossível pensar na possibilidade de instituir medidas combativas, sem saber a quantidade e as especificidades das pessoas em condição de vulnerabilidade, principalmente no que diz respeito à precariedade menstrual. O Brasil possui poucos dados estatísticos sobre a questão da pobreza menstrual, o que diz muito sobre o projeto de país que se apresenta a nós.

A precariedade menstrual no Brasil afeta mais mulheres do que nós gostaríamos de admitir. No Brasil, muitas meninas em fase escolar deixam de ir à escola durante o período menstrual por não terem condições financeiras de comprar um simples absorvente ou por não terem na escola um banheiro adequado, pasmem vocês. Outras mulheres, em situações de vulnerabilidade social, usam materiais inimagináveis como absorventes. Casca de banana, miolo de pão, casca de limão, jornal, esses são alguns dos itens utilizados para conter o sangue expelido por nossos corpos todos meses! Seria uma rejeição involuntária daquilo que fomos " programadas" para fazer?

ATÉ QUANDO OS CORPOS FEMININOS SERÃO VIOLENTADOS?!

Não ter acesso ao básico como um absorvente, comida, medicamentos, moradia, reflete de forma dolorosa aquilo que não queremos enxergar. A questão da pobreza no Brasil, seja a menstrual, seja a de comida, seja a de esperança, é como um grande espelho que cobrimos com um pano preto. De luto mesmo, de dor... O que os olhos não veem o coração não sente, seria isso?!

As costas viradas dos parlamentares homens, os dedos em riste dizendo um sonoro NÃO a todas as demandas femininas demonstram não só a falta de informação sobre questões de saúde pública, como denotam que o pacto coletivo dessa masculinidade nociva é unânime: Aqui elas não têm espaço! Que sangrem até se esvair, que usem jornais ou miolos de pão como absorvente, que tenham quantos filhos for possível, que tenham " educação", mas não muita, que voltem a pilotar o fogão ao invés de carros, aviões ou a própria vida.

“Você tentar sobreviver o tempo todo num lugar muito hostil, sem privacidade em nenhum momento, já é um processo abusivo para a população de rua no geral. Para a mulher isso pesa muito mais. Elas são tachadas de ‘bravas, loucas, as que reagem com agressividade’, mas muito disso vem dessa necessidade de estar se defendendo o tempo todo, de estar passando por situações que a gente, enquanto domiciliado, não faz nem ideia do que é.” (Vanessa Lima)

Nesse momento, enquanto estou escrevendo essas palavras, mais uma mulher sofre com as mazelas do sexismo que ganhou molas propulsoras. A cólica que é aguda e que me cutuca por dentro como se também quisesse falar, me lembra do tamanho do meu privilégio de poder menstruar com dignidade e conforto.

Dessa forma, penso que é imperativo que nossa geração deixe um legado mais leve para as nossas meninas, precisamos encorajá-las a tocar nas feridas do patriarcado, a arrombar as portas e porões que guardam nossa dignidade, nossa esperança, nossa confiança. Precisamos definitivamente quebrar o tabu que existe em torno da nossa menstruação. Sim, MENSTRUAÇÃO! Chega de esconder o nosso sagrado feminino, chega de rotular de mil maneiras algo que é natural e que nos faz sagradas!!

Precisamos entender, de uma vez por todas, que a questão da pobreza menstrual no Brasil não é apenas uma questão de saúde pública, mas também de violação de direitos básicos, de acesso à dignidade humana.

Alguém que sangra todos os meses e segue firme é mais do que capaz de revolucionar o mundo, concordam?!

Procurem coletivos que estão juntos nessa luta contra a pobreza menstrual, se mobilizem, ajudem aquela irmã que não tem 1/3 do seu privilégio, vamos juntas?

Deixo aqui registrado todo o trabalho lindo feito pelas mulheres da Casa Mirabal, em parceria com o coletivo Olga Benário, que abriga vítimas de violência doméstica e em vulnerabilidade social e que estão arrecadando absorventes e outros itens para suas residentes. Doem o que puderem, ajudem a promover o básico para quem já conta com tão pouco.

Para mais informações, entrem em contato pelo número (51) 9-9822-2722 ou pelo e-mail mulheresmirabal@gmail.com

Até a próxima, irmãs!

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