top of page

Reflexões sobre o não reconhecimento paterno

Ivete Machado Vargas

Fonte da Imagem:          adorocinema.com

Quem assistiu ao filme Boi Neon deve ter observado as belas imagens do filme e as tonalidades em que se passam as cenas, sempre destacando a sombra. Além do enredo que contesta os modelos hegemônicos de masculinidades e feminilidades, chamam atenção as cenas na estrada, por onde o caminhão boiadeiro passava. Mais de uma vez apareceu uma mulher caminhando sozinha, segurando uma criança pela mão. Há uma cena em que o personagem principal vivido pelo ator Juliano Cazarré, conversa com a menina e diz (diante da pergunta que ela faz se o pai dela voltaria) que ela deveria ir trás do pai; vaquejada não é lugar pra menina pequena. Também o filme Cidade de Deus, que além da violência urbana retrata relações de busca por um pai, por um dos atores, o que é contestado pelo outro, pois ninguém ali na favela sabia quem era seu pai. Ele mesmo, que tanto queria saber quem era o pai, estava criando como seu o filho da namorada, coisa comum no contexto do filme.

O livro de Ana Liési Thurler, “Em nome da mãe: o não reconhecimento paterno no Brasil”, fruto de sua tese de doutoramento, aborda este fenômeno: a deserção paterna no Brasil. Para Ana Liési, o não reconhecimento paterno se estrutura numa cultura que impõe responsabilidades às mulheres com relação aos filhos que não são impostas aos homens. Ela cita a teoria do contrato social, pelo qual as mulheres teriam se submetido livremente ao homem pelo contrato de casamento. Essa teoria influenciou muitos teóricos da Justiça.

As relações sociais incluem as relações naturais, familiares, e as relações convencionais, da vida pública. Segundo este pacto as mulheres se responsabilizariam pelo espaço privado, o do lar, e o homem pelo público, o dos negócios e da vida social. Este pacto funda a desigualdade no interior das estruturas patriarcais, nas quais o Brasil se insere, se traduzem numa diferença de tratamento entre filhos nascidos de relações de casamento e os nascidos fora do casamento (das mães solteiras e dos filhos sem pai, como apresentadas nos dois filmes), também vão se traduzir nas diferenças na filiação e na igualdade de direitos e deveres parentais.

As “relações de produção de gênero” são relações de produção da dominação e da exploração das mulheres (Mathieu, 2002:78, citado por Thurler).

O não reconhecimento paterno (a deserção paterna) é uma das formas pelas quais se expressam as relações sociais de poder entre homens-pais e mulheres-mãe. Essas representações não só permanecem, como eram validadas no sistema jurídico até bem pouco tempo no Brasil, onde a criança era considerada ilegítima se nascida fora do casamento. Somente a Constituição Federal de 1988 estabeleceu a igualdade formal entre todos os filhos e filhas (no casamento ou fora dele). Para entender a deserção paterna Thurler percorreu Cartórios de Registros Civis no país (especialmente o de Brazlândia, no Distrito Federal e o de Simões Filho, na Bahia), a fim de observar o fenômeno do não reconhecimento paterno/deserção paterna. Também estudou as Leis brasileiras para entender como este fenômeno se deu (e se dá) em longa escala e como as práticas jurídicas validam este comportamento masculino.

Quantos de nós não conhece alguém cujo documento de identidade consta pai ignorado, ou cujo pai, mesmo reconhecido, não participa da vida de seus filhos. Basta darmos uma olhadinha nos dados do Judiciário para verificarmos o número de ações (seja de investigação de paternidade, de alimentos), para ficarmos assombrados. Ao verificar os dados que contribuem para este comportamento, Thurler constatou que a maternidade, no Brasil, é imposta/compulsória, mas a paternidade é opcional, pois até no Documento de Nascido Vivo, primeiro documento fornecido nos hospitais quando do nascimento de uma criança, sempre vai fazer constar o nome da mãe, mas não necessariamente o do pai, pois não é exigido, o que indica o alto grau de sexismo da nossa sociedade. Dos pedidos de reconhecimento paterno, na justiça (cuja paternidade foi negada pelos pais, mas que se submeteram aos exames de DNA) quatro em cada cinco exames confirmaram a paternidade, o que confirma a veracidade da palavra da mulher. O sexismo, neste caso, aparece através das provas judiciais, que colocam em dúvida a palavra da mulher e nada fazem com relação à palavra do homem, mesmo quando se comprova a veracidade da palavra dela.

A hipótese de Thurler para o não reconhecimento paterno é que a composição do legislativo e do judiciário é predominantemente masculina, o que se traduziria em Leis que o beneficiam, como é o exemplo da Lei da paternidade, que embora seja um avanço, também é um retrocesso ao permitir que o homem a qualquer momento questione a paternidade, não colocando em questão os laços afetivos até então criados, nem as consequências disso. Também repercute na não aprovação do aborto, pois se fossem eles criminalizados por não assumirem seus filhos, ou por estimularem o aborto com seu comportamento de deserção, rapidamente o aborto deixaria de ser crime.

A ideologia da palavra da mulher como mentira presumida está fortemente ligada à misoginia como ideologia. Assim, desde a antiguidade, os homens não só acreditariam na inferioridade das mulheres, mas também que elas seriam perigosas a sua saúde física e moral. Vários rituais de purificação em todas as civilizações indicariam isso. Residiria nessa ideologia a não compreensão do corpo da mulher, a reprodução, os ciclos menstruais, etc. E os homens se confrontariam paradigmaticamente com a necessidade dos cuidados maternos na infância, de apoio e aprovação na adolescência e de continuação de sua linhagem, na vida adulta, ou seja, a misoginia seria uma dificuldade masculina de lidar com seus conflitos internos. Para Thurler, a misoginia como ideologia deve ser compreendida e politizada (THURLER, 2009:276-279).

A mulher tem que provocar o judiciário, através de uma ação de alimentos, e ainda escutar do homem a alegação de que ela está em outro relacionamento e “quem pega a porca, cria os porquinhos”, ou ameaça que vai entrar com um pedido de DNA, para eximir-se de pagar alimentos. Mesmo assim, nenhuma penalidade é imposta a estes pais desertores. Os próprios registros de nascimento (uma atividade institucional), ao não trazer muitos dados sobre o pai, nada fazem além de perpetuar a prática da deserção, por não contribuírem com dados estatísticos que permitiriam uma maior compreensão do fenômeno.

A escolha por outros modelos de união (inclusive a união livre), que não o casamento, mostra que as mulheres não se submetem mais ao controle masculino (65% das ações de separações judiciais são de autoria das mulheres) o que indica que a teoria do livre consentimento da mulher à submissão não é verdadeira, ou não vale para os nossos dias. Mesmo assim, os homens resistem aos novos modelos de relacionamento, pois a mulher permanece tendo a responsabilidade material pelas crianças, o que indica que a instituição patriarcal da divisão sexual do trabalho parental ainda resiste. A baixa cidadania do pai, associada ao arbítrio sexista patriarcal, permite que o pai adote comportamento discriminatório em relação aos filhos, assumindo os que ele quer e quando quer, o que a autora mostra em exemplos de pais que assumem alguns filhos e não outros por seu livre arbítrio (THURLER, 2009:290).

A aliança da Igreja e a medicina mantém a normatização da vida privada das mulheres desde o Brasil colonial e imperial e se reproduz na manipulação política do corpo das mulheres, pois há dificuldade de universalizar o planejamento familiar e o acesso ao aborto seguro é deslocado para o campo religioso e criminalizado (THURLER, 2009:295-296), culpando unicamente a mulher, embora toda uma série de pressões (inclusive do homem) possam pesar sobre ela. O contraditório de tudo isso é que, mesmo admitindo que a parentalidade é exercida quase que exclusivamente pelas mulheres, persiste a patrilinearidade nos registros civis (o sobrenome é o do pai) e a atribuição do nome da mãe é uma atribuição por falta. (THURLER, 2009:299).

Para romper com este cenário, Ana Liési recomenda: vincular a paternidade à construção de uma democracia mais qualificada (tensão entre tradição/modernidade, mudanças/resistências). Isso envolve um trabalho político que busca efetivar as leis e mitigar as desigualdades sexuais e parentais, visto que a deserção da paternidade foi socialmente construída pelas vias históricas, políticas, jurídicas e culturais (THURLER, 2009:319). A mulher só terá sua palavra valorizada quando ela puder dizer “criança que eu quiser, quando eu quiser”, ou seja, quando ela puder ter autonomia sobre o controle da reprodução, e sobre a interrupção ou manutenção de uma gestação.

A inversão do ônus da prova, nos casos de investigação de paternidade, e a valorização da palavra da mulher poderá mitigar em parte os sacrifícios impostos á esta. Também o pai deve ser valorizado como cidadão, o que é um trabalho que deve unir a sociedade e o Estado no reconhecimento paterno e na produção de uma educação não-sexista; socialização dos direitos reprodutivos como direitos de todas as mulheres e de todos os homens e ampliar a perspectiva da paternidade e da parentalidade como questões de interesse público e de cidadania.

REFERÊNCIAS:

BRASIL, Lei 8560, Lei da Paternidade, de 29/12/1992.

THURLER, Ana Liési. Em nome da Mãe: o não reconhecimento paterno no

Brasil. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2009

Comments


bottom of page