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Por amor a Flávio Migliaccio

A carta de Flávio Migliaccio foi publicada na internet por algumas pessoas conscientes da minha rede de amigos. Tudo que envolve suicídio é visto em torno de um grande manto de tabu, e, logicamente, a publicação da carta foi bastante criticada com a justificativa de que a tal imagem seria “gatilho para pessoas deprimidas”. Achei até irônico pensar que tal publicação é gatilho de suicídio, enquanto as notícias dos jornais nos mostram todos os dias que já morrem mais de 500 pessoas/dia de Covid no Brasil.

Essas mortes desnecessárias sim são gatilho de suicídio, nossa política totalmente desestruturada sim é motivo de gatilho, nossa desigualdade social sim é motivo de gatilho, as falas do presidente sim são gatilho de suicídio. É disso que fala a carta do Flávio quando ele descreve que seus 85 anos foram em vão e que “a humanidade não deu certo”.

O que faz alguém como ele, que sempre foi visto cheio de vida, se sentir com tal desesperança para escolher a morte não é um gatilho: é um alerta. É um sinal de que alguém consciente, que faz como a borboleta, mutações constantes, transformando a todo tempo dor em arte, dessa vez não conseguiu fazê-lo.

Mesmo sabendo que sua expectativa de vida poderia ser de mais 10 ou 20 anos, Flávio não quis mais ser plateia da desumanidade nem por mais um segundo. Lima Duarte falou que consegue entendê-lo porque tem 90 anos e já passou pelas mesmas dores, mas também consigo entendê-lo no auge dos meus 28 anos e espero que consigas entendê-lo em qualquer que seja sua idade.

A carta de Flávio é um pedido desesperado de “olhem para nós”: olhem pra nós idosos, olhem pra nós artistas, olhem pra nós pessoas, olhem pra nós pequenos, olhem pra nós estranhos, olhem pra nós mulheres, olhem pra nós homens, olhem pra nós crianças, olhem pra nós médicos, olhem pra nós enfermeiros, olhem pra nós técnicos de enfermagem, olhem pra nós garis, olhem pra nós diaristas, olhem para todos nós e por todos nós…

Enquanto a gente não conseguir enxergar que o verdadeiro problema não está na carta do Flávio, mas sim na sociedade doente que a denuncia é porque não conseguimos olhar de frente pra dor. Não conseguimos ser verdadeiramente humanos e reconhecer seu manifesto legítimo, seu último ato social.

A raiz do problema não está em ver o suicídio, a raiz do problema está em não olhar pra dor, em não olhar pra sua raiz social em não trabalhar responsavelmente para transforma-la. Trabalhemos para transformá-la para não perdermos pessoas tão significantes nas nossas vidas. Nos inspiremos nos 85 anos de Flávio artísticos, alegres e espetaculares e, em homenagem a ele e a todas as inumeráveis pessoas que nos deixaram nesse último período, estejamos atentos a nossa humanidade.

Psicóloga Juliana Soeiro

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