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Pedagogia da Violência: como justificamos e perpetuamos

Marlene Neves Strey

Há muito tempo atrás, ao entrevistar um motorista de ônibus, ele me disse que era um homem de bem porque seu pai não poupou a vara quando ele era pequeno. Raramente escutei palavras semelhantes por parte de uma mulher. Não lembro de minha mãe ter me batido. E meu pai, lembro, apenas uma vez tentou me bater com um chinelo, mas acabou batendo mais nas suas próprias pernas porque eu era muito rápida e conseguia me contorcer o suficiente para escapar das chineladas.

Essas lembranças me fazem associar ao volume imenso de violência que vemos cada dia ao nosso redor e também por meio da imprensa, rádio, televisão. Tudo isso, em princípio, deveria por abaixo os estereótipos que retratam a família como um lugar onde as pessoas buscam segurança, amor e compreensão. Muitas manchetes mostram filho que mata o pai pelo dinheiro do seguro de vida; mães e pais que batem nos filhos e nas filhas, muitas vezes até à morte; mulheres são maltratadas e mortas por seus companheiros.

As delegacias da mulher estão sobrecarregadas de trabalho; as ruas são lugares que dão medo (mas a gente já sabe que em casa também não se está a salvo); as escolas buscam proteção da polícia, pois vivem sendo assaltadas, os/as alunos/as batem nos/as professores/as e vice-versa; as empresas mantêm verdadeiros exércitos de guardas para proteção de seus executivos e empregados. E poderíamos seguir dando inúmeros exemplos que mostram que vivemos cercadas/os de violência por todos os lados.

Existem muitas possibilidades de definir o que seja violência, tantas quantas sejam as teorias e práticas de pensá-la. Pode-se dizer que é um conceito que tem inúmeras facetas que podem indicar uma ação, mas também podem ser uma “não-ação” (por exemplo, uma omissão) de uma pessoa, de um grupo, de uma instituição e assim por diante. Pode ser explícita, implícita, direta ou indireta. Podemos presenciar sua ação quando vemos uma pessoa batendo em outra ou, então, podemos nos dar conta de sua existência quando vemos suas consequências, como por exemplo a fome, o desemprego, os “sem-terra”, os “sem-teto” etc. Muitas vezes necessitamos refletir muito até nos darmos conta das diferentes máscaras da violência, como, por exemplo, aquela dos padrões de beleza propagadas pelos meios de comunicação. Como se pode ver, a violência tem muitas caras e usa muitos disfarces, tais como a tradição, a moralidade. Outras são nuas e cruas, sem qualquer disfarce, mas todas atropelam indivíduos, famílias, casais e grupos inteiros.

Obviamente, não é a única razão, mas uma das maneiras de justificar e de perpetuar a violência, é aquilo que chamo de pedagogia da violência. Quer dizer, desde crianças somos ensinadas/os a resolver nossos problemas por meio da violência. Principalmente os homens que, segundo algumas famílias, jamais devem levar desaforos para casa, devem tratar de dar o troco e resolver a questão mesmo na base da porrada, se for o caso.

E isso não é coisa de gente ignorante ou sem instrução como muita gente pensa. Há alguns anos, realizei uma pesquisa com estudantes universitários/as (Psicologia, Direito, Serviço Social, Enfermagem) e da escola de polícia, sobre essas questões de violência. A grande maioria dos/as participantes afirmou que os homens são mais violentos que as mulheres devido à sua força e poder, além da tradição e da cultura do machismo. Alguns poucos/as também mencionaram a impulsividade e falta de controle, colocando a questão a nível individual. Quando perguntados/as se existia algum motivo que justificasse a violência interpessoal, a grande maioria disse que isso nunca se justificava, mas alguns/as disseram que a traição e o desrespeito, a dependência tóxica, a insatisfação poderiam justificar isso, além, é claro, para defender-se e o descontrole. Depois, entre outras coisas, eu perguntava sobre os castigos físicos para as crianças. Novamente, embora menos que a não justificativa de um homem bater em uma mulher, os/as participantes disseram que era algo que não se justificava. No entanto, várias pessoas disseram que se justificava quando as crianças se comportavam mal, quando as outras punições não funcionassem e, mais que nada, para educar.

Os/as estudantes, futuros/as profissionais que um dia trabalhariam com as vítimas da violência, se mostraram ambivalentes frente à questão da punição física. Parece que bater em adultos, homens ou mulheres, não é uma solução aceitável. No entanto, quando se trata de meninos e meninas, sim se pode bater se outras maneiras de educar e disciplinar não conseguem mudar seus comportamentos. Muita gente pensa como eles/as. Só que não se dão conta que, com isso, bater para disciplinar, estão ensinando às crianças que a solução violenta é aceitável se não se encontram outras mais efetivas. Ou seja, se ensina que às vezes não há outro jeito que ser violento/a. Isso sem falar na diferença de tamanho, de autoridade e do modelo que se está mostrando.

Enfim, o mundo é violento por muitas razões, mas algumas estão sendo ensinadas por aqueles/as que têm a responsabilidade de tornar este mundo melhor para seus filhos e suas filhas. E que acham que estão fazendo isso por meio de tapas e do chinelo…

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