top of page

O que aprendemos com a história da humanidade?

Quando a gente não lê a letrinha miúda da História que aprendemos no colégio, em alguns livros, em certos filmes e no que muita gente diz por aí, podemos ficar com certas noções estereotipadas do que aconteceu no passado e, dessa maneira, não aproveitar ao máximo o que a História nos ensina sobre as relações da Humanidade na construção de seu mundo social e cultural.

Hoje eu quero tratar de uma certa ideia que percebi por aí, de que a Idade Média, cognominada de a era das trevas, foi uma época em que tudo era mais ou menos inamovível, ou seja, quem era servo continuava servo, quem era nobre continua nobre. E ninguém pensava em mudar isso já que, segundo as crenças da época, na Europa, tudo o que passava na Terra era vontade de Deus. Pois é… Só que não! Tudo era realmente muito lento se comparado com os dias atuais, mas, quando a gente se aproxima com maior detalhamento sobre os vestígios deixados, vemos que aqueles tempos eram verdadeiros caldeirões de lutas sociais, de mudanças que lutavam contra permanências. Tanto que Sílvia Federici, a intelectual feminista italiana escreveu que essas lutas, nem sempre devidamente mencionadas, “escreveram um novo capítulo na história da libertação” e que “em seu melhor momento, exigiram uma ordem social igualitária baseada na riqueza compartilhada e na recusa às hierarquias e ao autoritarismo”. Claro, ela também escreveu que essas reivindicações continuam sendo utopias… Ou seja, as lutas sociais continuam sendo travadas nos dias de hoje buscando liberdade e igualdade tanto quanto antes. Mas, não são apanágio dos tempos modernos, é coisa que vem de longe. Posso dizer que o papel que as mulheres tiveram em toda a História foram papéis de luta para a mudança na direção da igualdade, mas que sempre houve uma tentativa de ocultar ou, de maneira pejorativa, deformar suas contribuições . O caso das bruxas, que morreram aos milhares em diferentes períodos da Idade Média, não pôde ser abafado, dado seu número elevado de vítimas. E, também, porque sob esse rótulo, as mulheres continuaram sendo mortas em outras épocas posteriores e para além da Europa. Mas as mulheres estavam presente em todos os atos de rebeldia, mas são escassamente relembradas.

Sobre as bruxas, há muito a ser falado, mas eu quero falar sobre uma mulher que fez sucesso em uma época em que era muito difícil ser mulher, principalmente porque ela era completamente diferente daquilo que era preconizado para uma mulher. Estou falando de Cristina de Pisan (ou Cristina di Pisano, ou Christine de Pizan). Ela nasceu em Veneza, filha de pai que era médico, astrólogo e professor da Universidade de Bolonha em 1363.  Ela é um ótimo exemplo de que um lar erudito e incentivador é fundamental para desenvolver capacidades intelectuais mesmo nas mulheres, que eram consideradas seres irracionais e de pouca valia para o mundo da intelectualidade.

Na realidade, não foi bem a família de Cristina que a incentivava, mas sim seu pai, que contribuiu de todas as maneiras para o desenvolvimento intelectual da filha. A mãe dela, apesar de ser oriunda de uma família de intelectuais, era contra qualquer atividade que afastasse a filha de suas obrigações domésticas. Deu o acaso ou a sorte, que o pai de Cristina transferiu-se para Paris, onde foi ser secretario de Carlos V, Rei da França. Ela, então, desde muito pequena passou a viver em um ambiente erudito, amparada pelo pai e cerceada pela mãe. Tinha ao seu dispor bibliotecas e contatos com as mentes brilhantes daquela época, embora se pensasse que os estudos corrompiam as mulheres.

Quando tinha 15 anos, casou com um jovem dez anos mais velho que ela. Algum tempo depois ela perdeu o pai e, em seguida, o marido, ficando em péssimas condições financeiras, tendo a seu encargo o sustento da mãe, dois irmãos, três filhos e uma sobrinha. Ela enfrentou essa situação dedicando-se àquilo que ela melhor sabia fazer: escrever. Produziu uma enorme obra, bem diversificada, com poemas, tratados de educação , morais e políticos, com destaque a temáticas frequentes do universo feminino. Nesses escritos, ela lançou a noção pioneira de que as diferenças encontradas entre homens e mulheres em termos de pensamento, ações e possibilidades, não eram de origem biológica, mas sim construções de ordem religiosa, cultural e social. Tudo muito escandaloso para aquela época não é mesmo?

No entanto, ela era tão consistente em seus argumentos e tão decidida, que obteve espaço e aprovação, garantindo o estatuto de escritora e notoriedade, principalmente a partir da publicação de escritos em resposta ao famoso poema medieval Roman de la Rose (Romance da Rosa), um dos livros mais populares em toda a Europa no século XIII. Esses escritos fizeram emergir um debate sobre o livro, considerado misógino (pelo menos em sua segunda parte), com mulheres e homens apoiando as ideias de Cristina e alguns homens combatendo essas mesmas ideias.

Cristina escreveu mais de trinta obras, em que redefiniu alguns mitos tradicionais e transformou seu trabalho em uma verdadeira enciclopédia de mitos femininos, deixando a mensagem de que a educação é o principal meio de ascensão das mulheres na sociedade. Com essa vida defendendo um lugar melhor para as mulheres dentro da cultura, ela é considerada a precursora do feminismo moderno. Não se sabe bem quando morreu, aparentemente foi em torno de 1430, no Mosteiro de Poissy, na França, onde viveu seus últimos anos sem nunca ter sido freira.

Marlene Neves Strey

Comments


bottom of page