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O que acontece hoje, de alguma maneira já aconteceu antes

Marlene Neves Strey

Existem algumas expressões linguísticas que ficam em voga em certas época e em algumas circunstâncias. No momento atual, a expressão fake news (notícias falsas) é uma das mais faladas e discutidas. Os debates são acalorados, os argumentos muito variados. Os meios de transmissão dessas fake news, assim como das discussões levadas a cabo sobre elas, são todos aqueles em que a linguagem está presente, ou seja, os meios de comunicação de massa (jornais, revistas, TV etc.), internet e as redes sociais, as conversas de bar, as discussões em sala de aula e assim por diante. Essa expressão, embora da língua inglesa, está na boca de todo o mundo hoje em dia. Tendo assistido alguns embates, me dou conta de que nem sempre a discussão é acadêmica, não busca compreender propriamente o que está em jogo, mas é uma ferramenta eminentemente política, que busca atingir objetivos políticos contraditórios.

Parece bem coisa do século vinte e um não é mesmo? Parece coisa do momento que vivemos, de disputas eleitorais. Isso parece ser verdadeiro, mas vai além disso. Para não falar na questão política essencial de agora, lembro que, de vez em quando, temos notícias de tentativas de linchamento de pessoas que, por algum motivo, correu a voz de que eram isso ou aquilo e o grupo de linchadores decidiu tomar a justiça (justiça?) nas próprias mãos. Ou porque o ato supostamente cometido era um crime, ou porque a pessoa linchada pertencia a um determinado grupo social odiado pelos grupos que decidiram “fazer alguma coisa”. Com o passar do tempo, fica difícil saber exatamente como tudo começou. Fica-se sabendo que apareceu um boato e depois tudo ficou descontrolado.

Com esse ou outro nomes, essa tática de espalhar boatos não é de agora. Para exemplificar a antiguidade dessa ação, trago a história de Hipátia (ou Hipácia). Ela foi uma mulher que quebrou muitos padrões na época que viveu (parece que ela nasceu em 355 depois de Cristo na Alexandria – Egito de hoje). Naquele tempo, as mulheres deveriam passar desapercebidas, restritas aos labores domésticos e ao anonimato do

lar. Pois bem, Hipátia não fez nada disso. Em parte porque seu pai, Theon, que era filósofo reconhecido, astrônomo e matemático no Museu de Alexandria, a educou e incentivou a ultrapassar os limites dados às mulheres. Ainda adolescente, foi estudar em Atenas, na Academia Neoplatônica, onde, segundo alguns textos antigos, destacou-se principalmente em matemática.

Quando voltou a Alexandria, passou a lecionar e seu nome foi rapidamente reconhecido tanto nos meios acadêmicos como nos meios populares. Ora, tanto pelo fato de ser uma mulher atuando com sucesso dentro de um ambiente eminentemente masculino, como por aquilo que ensinava, ela passou a ser um problema em uma época cheia de problemas. Alexandria, por decreto, era cristã, no entanto, parte da população era pagã ou simplesmente laica. Os conhecimentos matemáticos de Hipátia não deviam ser vistos como perigosos, mas seus conhecimentos de astronomia e filosofia sim. Em astronomia seus ensinamentos sobre o cosmos provavelmente diferiam do que as crenças cristãs já estavam ensinando. E a Filosofia nem sempre era compatível com a religião.

O Patriarca Cirilo que comandava a igreja em Alexandria era ferrenho defensor de como deveriam ser as crenças e ações das pessoas. Obviamente Hipátia, transgressora em todos os sentidos, inclusive no sentido político, foi alvo da atenção de Cirilo que iniciou uma campanha contra ela. O auge aconteceu quando o Prefeito de Alexandria, Orestes, amigo de Hipátia, recusou-se a dialogar com Cirilo. O boato corrente que isso era influência dela, provavelmente porque ela era pagã.

Certo dia, ao ir ou vir da Academia, Hipátia foi rodeada por uma turba de cristãos (ou supostos cristãos) que a arrastaram para uma igreja, onde foi dilacerada por objetos cortantes, que alguns dizem ser conchas marinhas, esquartejada e seus restos queimados em praça pública. Certos historiadores consideram que ela foi uma das primeiras vítimas de crime político. A História a reconheceu como pensadora e mente brilhante. Cirilo foi, séculos depois, galardonado como Doutor da igreja e depois como santo.

Essa pequena história exemplar mostra como é importante estudarmos história.

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