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O perigo da história única



" Eu acho que essa única história da África vem da literatura ocidental. Então, aqui temos uma citação de um mercador londrino chamado John Locke, que navegou até o oeste da África em 1561 e manteve um fascinante relato de sua viagem. Após referir-se aos negros africanos como “bestas que não tem casas”, ele escreve: “Eles também são pessoas sem cabeças, que “têm sua boca e olhos em seus seios.” Mas o que é importante sobre sua escrita é que ela representa o início de uma tradição de contar histórias africanas no Ocidente. Uma tradição da África subsaariana como um lugar negativo, de diferenças, de escuridão, de pessoas que, nas palavras do maravilhoso poeta, Rudyard Kipling, são “metade demônio, metade criança”.

Chimamanda Ngozi Adichie

Seguindo na linha de raciocínio da gigante Chimamanda, tenho refletido muito sobre como estamos acostumados com histórias únicas, que foram contadas e perpetuadas como verdades absolutas, sobretudo, com relação à população negra de forma geral.

Explico: Quando pensamos ou falamos do povo negro, o primeiro pensamento que vem à cabeça é a escravidão. Ora, por motivos óbvios não podemos e nem devemos esquecer e negar esse capítulo sombrio da história da humanidade, porém, será que o povo negro, oriundo de um dos continentes mais majestosos que é o continente africano, deveria ser reduzido a tão pouco?

Será que o povo africano, quando sequestrado da mama África, deixou pra trás toda sua ancestralidade e história? Será que nossa cultura foi deixada nos navios negreiros e nos corpos negros que foram alçados ao mar?

Será que aquela mãe preta que trouxe consigo seus patuás não trouxe também um resquício de nossa bagagem cultural?

Será que o amado carnaval brasileiro, o samba, o axé, a feijoada, não são traços culturais africanos que vieram com a diáspora africana anos atrás?

Essa história única sobre os negros que foi contada e que se tornou nossa verdade absoluta soterra, ainda mais, nossa ancestralidade. Mas, ao mesmo tempo, perpetua esse pensamento colonialista e reafirma as estruturas racistas ocidentais, quando, por exemplo, temos a nossa história ou verdade condicionadas à uma única e " absoluta" versão dos fatos.

Exemplo: Jovem negro é acusado por casal de roubar bicicleta elétrica!!

Manchete em letras garrafais nos principais jornais do país. O que esse fato nos diz? Diz que a história única do negro subalterno, miserável e ladrão se tornou a verdade única do jovem negro no Brasil. Mas será que essa é a nossa única verdade?

Djamila Ribeiro, um dos principais expoentes do feminismo negro brasileiro, sabiamente afirma que " Precisamos ocupar lugares que historicamente nos foram negados". E eu concordo plenamente com Djamila. Porém, quando nos deparamos com notícias como a referida, me vem à cabeça que essa maldosa e conveniente história única que foi atribuída ao povo negro segue nos renegando lugares. É lutar com o peso de 500 anos de atraso!

De fato, precisamos ocupar a academia e tornar " normal" mulheres/homens pretos acadêmicos. Precisamos que nossas crianças vejam que uma Maju no horário nobre da Tv Globo é "normal" e alcançável, que a médica negra no posto de saúde também é! Mas será que a sociedade ( quando falo de sociedade, refiro-me à branquitude) está pronta para normalizar nossa presença nesses lugares? Tenho quase certeza que não!

Até quando jovens mulheres serão assassinadas, na porta de casa, aos 24 anos e carregando uma vida? Afinal, a jovem Kathlen Romeu, que teve a vida ceifada pela polícia do RJ, não era o estereótipo dessa verdade/história única atribuída a nós. Era uma jovem designer de interiores, recém formada, que acabara de sair de sua comunidade, Complexo do Lins/RJ, justamente por temer a violência. Até quando corpos negros serão apenas mais do mesmo?

Até quando meninos irão simplesmente desaparecer, sem nenhuma explicação, e seus corpos e suas vidas não terão valor algum, afinal, eram apenas três neguinhos de uma favela qualquer, que provavelmente atuavam no tráfico!!


Essa, infelizmente, é a história única que foi atribuída aos meninos Lucas Matheus, Alexandre e Fernando, desaparecidos há 6 meses. Eles não são vistos como crianças! São vistos como projetos de marginal. E é justamente essa história única que é esperada deles.

Minha pergunta: Se fossem três meninos de classe média, do bairro Leblon, o tratamento (ou falta dele) seria o mesmo?

Até quando as mães pretas terão que enterrar precocemente seus filhos que saem para trabalhar ou estudar e não retornam? Até quando mães como a do menino Miguel terão que transformar luto em luta para que sua dor seja transformada em potência e, quem sabe, em mudança?

Até quando teremos que ensinar nossas crianças a se portarem "bem" em uma possível abordagem policial? Até quando teremos que ensinar nossas meninas a se amarem mesmo diante de um mundo que lhes diz todos os dias que suas características não são belas? Até quando precisaremos reafirmar que " SER NEGRO É LINDO" ou que " VIDAS NEGRAS IMPORTAM"?

- Obrigado Beyoncé por suas Odes à África ancestral/grandiosa como " Black is King" e " Homecoming"

Até quando teremos que " comprovar" que aquele carro que dirigimos é, de fato, nosso? Que a casa/apartamento que moramos é nossa e não alugada? Que nosso diploma é nosso, que o vidro que limpamos é nosso e não da patroa, que a preta(o) não é metida, é consciente de sua existência como qualquer outra pessoa, até quando George 's Floyd' s seguirão sem conseguir respirar? Até quando?

Eu sigo sem respirar, sigo com aquele nó na garganta, sigo com medo de ter filhos, sobretudo, num país que retrocedeu 50 anos em 3... Sigo com medo de ter um menino negro num dos países que mais mata a juventude negra, sigo com medo de ter uma menina num dos países que mais mata mulheres nas américas ( e no mundo)... Sigo SEM CONSEGUIR RESPIRAR!

Nas palavras de Chimamanda: " A consequência de uma única história é essa: ela rouba das pessoas sua dignidade. Faz o reconhecimento de nossa humanidade compartilhada difícil. Enfatiza como nós somos diferentes ao invés de como somos semelhantes."


Até a próxima, irmãs!

Por Amanda Rodrigues



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