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O direito de agredir

Fonte da imagem: Sputnik Brasil

Há poucos dias foi aprovada pela Câmara Baixa do Parlamento Russo, DUMA, com a votação quase unânime – de 386 votos a favor, 1 contra, e uma abstenção – pelos Deputados, a proposta de Lei que transforma a agressão que ocorre dentro do núcleo familiar. A nova lei descriminalizaria a agressão que ocorre entre familiares, (cônjuges, pais e filhos, e jovens e idosos), determinando que para ser considerada violência doméstica punível como crime, esta, deve necessariamente, produzir danos severos, considerados assim, aqueles em que se faz essencial, tratamento médico/hospitalar, ou aquela que não produz tais consequências, e, desde que ocorra mais de uma vez ao ano.

Noutra palavras, está livre a agressão anual, desde que, não deixe “marcas”.

Em pleno século, XXI, isto pode soar, e de fato soa, extremamente absurdo, e é. Relaxe, não estamos malucas, isto é a égide do retrocesso.

A proposta uma vez votada na câmara alta do Parlamento Russo, não poderá ser alterada, e finalmente chegará ao presidente Putin, para ser finalmente promulgada.

O Supremo Tribunal Russo, ano passado, havia indicado alterações no sentido de que as agressões domésticas, fossem criminalizadas, e que agressões leves entre cidadãos em geral, deveriam ser descriminalizadas. Portanto se percebe que o Supremo Tribunal Russo, estava alinhado com os dados numéricos mais que preocupantes de violência doméstica naquele País. A população feminina na Rússia é de 78.589 milhões de mulheres; quantificados 600 mil casos de violência contra a mulher, por ano, e o número de mulheres mortas ao ano por seus companheiros ou maridos, é de 14 mil mulheres.

O número é absurdo: 1,78 % da população feminina é morta por força de violência doméstica ao ano, na Rússia.

Diante da sugestão do Supremo Tribunal Russo, houve manifestações da ultradireita, representados tanto pela Direta Conservadora, quanto pela Igreja Ortodoxa russa, e eles, se fizeram ouvir.

Na conferência de imprensa anual, em final de 2016, o presidente Putin, questionado acerca do assunto, foi categórico: “Não vamos enlouquecer. A interferência [do Estado] em assuntos familiares é negativa e acaba por destruir a família”.

Putin assim deixa claro, seu ponto de vista sobre violência doméstica.

A agressão, mesmo aquela que não resulte em atendimento médico/hospitalar, e que seja a primeira do ano, será punida apenas com uma multa de até 30 mil rublos (472 euros), 15 dias de “detenção administrativa” ou 120 horas de serviço comunitário, deixando de ser consideradas crime.

Embora, absurda a pretensa e infelizmente, provável lei, que descriminaliza a violência doméstica, tornando-a mera questão administrativa, o que mais chama nossa atenção, é que os protagonistas de tais alterações legislativas, são duas mulheres. Exatamente o que você leu.

A Senadora russa Yelena Mizulina, que declarou que “um homem bater na sua esposa é menos ofensivo que uma mulher humilhar um homem” e que foi a principal defensora da lei recente que bane a “propaganda gay”, e a deputada, Olga Batalina, são as maiores defensoras da proposta.

Olga Batalina defende que “O Código Penal ainda prevê responsabilidade criminal para agressões, mas agora isso será aplicável apenas a agressores reincidentes. Quem aterrorizar os seus familiares fazendo-o repetidamente, vai enfrentar a responsabilidade criminal”. Batalina acrescentou ainda, em defesa da proposta de lei, que a lei seria aligeirada tendo em conta atos de violência cometidos “num conflito emocional, sem malícia, sem consequências graves. Estamos a falar apenas de arranhões, feridas, o que também é mau, claro”.

Tudo isto, parece não fazer parte de um universo onde a violência contra a mulher é tão significativa, como bem demonstram os números, mas parece estar em consonância, onde se tem como uma normalidade patológica que torna até “aceitável”, a violência doméstica, já que “…se ele te bate é porque te ama”, como denuncia a excelente matéria de Oleg Boldyrov, correspondente da BBC em Moscou, na matéria sob referência.

O que leva estas duas mulheres, empoderadas por evidentemente, outras mulheres, suas eleitoras, a fazerem ouvidos moucos e olhos cerrados sobre questões que podem fazer delas próprias vítimas. Sim, porque na condição de mulheres, se forem vítimas de agressão de seus companheiros ou maridos, desde que estes, não lhes quebrem os ossos, NÃO poderão se OPOR, se irresignar, se proteger.

A que ponto a ideologia de dominação, pode exercer poder sobre alguém? A que ponto uma ideologia forjada a ferro e sangue, que expõe uma sociedade doente que sofre pela ausência da concreta aplicação da igualdade de direitos, entre homens e mulheres, que quando efetivamente tem entre seus membros empoderados, como no caso, uma Deputada e uma Senadora, com possibilidades efetiva de mudar este triste paradigma, especialmente neste caso, sendo “mulheres” – portanto vítimas em potencial, podendo então fazer modificações, buscam manter o velho, arcaico, dolorido, status quo ante, ou seja, buscam manter e fortalecer esta doença social?

E, ao mesmo tempo, em que me vejo indagando, e sentido aquele misto de revolta e tristeza, constato que em verdade, eu sei bem o motivo, embora, com ele me debata, e me revolte, ele é um velho conhecido meu, e seu; ele é abastecido pelo mesmo sentimento que motiva tantas mulheres que conhecemos a julgarem outras mulheres, seja pela sua forma de se vestir, pela atitude de se divorciar ou de sair de uma relação desrespeitosa, infeliz.

Reconheço-o na postura daquela amiga, que silenciosa me julga quando eu afirmo posições de igualdade, de liberdade; reconheço-o, naquelas que chamam de vagabunda a mulher que vive de forma livre sua sexualidade; que descrevem como provocante aquela que se veste, como deseja; é a mesma que afirma que a mulher que sofreu assédio, ou foi estuprada é porque evidentemente, “provocou”. Está na voz daquelas mulheres que pensam que mulher que apanha é porque fez algo de errado, como se fossemos “coisas menores”, ou pessoas, que necessitem perenemente de representação, assistência, tutela, para ser “algo” ou “alguém”; ou ainda, porque “no fundo, no fundo, gosta de apanhar”; que atribui àquela mulher que recebeu tantas promoções profissionais, obviamente destaque aos dotes físicos e/ou insinua favores sexuais; reside naquelas que labutam diuturnamente em igualdade de esforços com seus companheiros, mas que acham que está tudo certo, em chegar ao final do dia em casa, e continuar sua rotina de trabalho, cozinhando, limpando, cuidado dos filhos, enquanto seu par, pode simplesmente relaxar. Está na postura daquelas que diante de piadas machistas, sexistas ou misóginas, se calam, e por vezes estampam um sorriso; está na nossa velada omissão acerca do desejo e do sexo; na tristeza da submissão; na tristeza da retórica, e na falta de coragem de transformá-la.

Portanto, quando você mulher, olhar para outra mulher, não se engane, você está olhando para a cidadã que você é, que a sua filha será, que seus descentes serão, e que a sua mãe, avós, ascendentes, foram.

Algumas fontes consultadas: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2013/03/130304_russia_mulheres_agressao_bg.shtml

https://countrymeters.info/pt/Russian_Federation

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