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Natália do BBB 22 e a Dororidade da mulher preta!


Fortes, guerreiras, mulherão da porr@, aguerrida, aguentam tudo. Esses são alguns dos adjetivos atribuídos às mulheres negras.

Historicamente, essa condição de 'Fortes' nos foi atribuída para "justificar" os absurdos que nos fizeram - e ainda fazem- passar. É sabido que as mulheres negras lideram os piores rankings, como os de violência ginecológica e obstétrica ( outro fato herdado do passado escravagista do Brasil), feminicídio entre outros.


Nos anos 90,no intuito de embranquecer o país mais miscigenado de todos, mulheres negras foram esterilizadas de forma massiva e forçada.

Nesse momento, você deve estar se perguntando o que esses fatos têm a ver com o tão famoso reality da Globo. Pois bem, te digo que tem tudo a ver porque além de abordar o racismo estrutural, que fundamenta, ainda hoje, o preconceito racial neste país, elucida o machismo, tanto de homens como de mulheres (principalmente as participantes brancas do programa), como traz à tona um conceito talvez não muito difundido que é o racismo recreativo.

Racismo Recreativo, segundo o jurista Adilson Moreira em seu livro de nome homônimo, publicado pela Coleção Feminismos Plurais é um "mecanismo que encobre a hostilidade racial por meio do humor".

Nessa linha, temos o episódio ocorrido no BBB 22, onde numa das dinâmicas do jogo, o cruel Jogo da Discórdia, a participante Natália, hostilizada gratuitamente desde o início do programa, sofreu uma sequência de "baldadas" num efeito manada e, num dos momentos mais chocantes da dinâmica, visivelmente abalada e humilhada, levou não só um banho de água gelada, como sofreu uma agressão de outra participante ao ter o balde da discórdia batido na sua cabeça.

Ali, sentada vendo aquela cena, eu só conseguia chorar e pensar que todas as mulheres negras que estavam assistindo ao programa sentiram, naquele momento, o mesmo nó na garganta que eu, o mesmo aperto no peito, o mesmo sentimento de impunidade. Todas nós levamos aquela "baldada" na cabeça junto com a Natália.

Natália, que tem apenas 22 anos, é tratada como forte, como durona, como uma mulher adulta. Enquanto outras participantes, com a mesma idade, são tratadas como "meninas". Essa diferença de tratamento além de ser uma mais uma mazela do racismo, também nos mostra que a sororidade que contempla a mulher branca, não contempla a preta.

Não à toa, foi preciso que Vilma Piedade cunhasse um termo que trouxesse a interseccionalidade das demandas da mulher preta pra dentro desse feminismo dito como homogêneo, mas que se cala e cega enquanto mulheres que fazem parte de grupos minorizados seguem, sistematicamente, sendo violadas.

A dororidade cunhada por Vilma não se propõe a ser um conceito oposto à Sororidade, mas sim seu complementar através da dor da mulher negra, já que para a autora “o feminismo existe pra mulher negra já há muito tempo, desde que fomos escravizadas”, tendo em vista a irmandade necessária à sobrevivência destas mulheres.

Dororidade é a empatia das mulheres negras ligada pela dor comum. Dor comum que advém de se reconhecer como negra e dos racismos vigentes. E é essa dor que me conectou com a pessoa da Natália, que iniciou sua jornada no programa de forma polêmica quando romantizou o triste episódio na história da humanidade que foi a escravidão do povo negro. Natália nada mais é do que uma menina de 22 anos que teve sua jornada escrita pelas linhas do racismo e do machismo e que, diante de uma vida dura, nunca teve tempo pra racializar o seu pensamento. Ao contrário, de fato acredita nessa "fortaleza" imposta pela branquitude às pessoas negras com o único intuito de mascarar as crueldades as quais fomos - e ainda somos - submetidos.

E, embora sua fala seja totalmente equivocada, Natália carrega em si a doçura dos seus 22 anos, mas também a coragem ancestral de ser mulher, sobretudo de ser uma mulher negra no Brasil.

Pra mim, ainda tão machucada por cada situação que ainda passo, mesmo estando no ano de 2022, ver a trajetória dessa mulher marcada não só pelo racismo, mas também pelas manchas do seu vitiligo, que coloca mais uma pá de areia na cova que foi aberta para nós desde sempre, é como abrir com as mãos uma ferida que estava guardada. É como enfiar o dedo naquele machucado ainda inflamado e sentir muita dor.

E essa minha inquietude é um estado que abarca as classes minorizadas, ressaltando que o machismo é sim, necessariamente uma discussão de raça, visto que este é racista e classista.

Afinal, por que uma mulher livre incomoda? Por que aceitamos que uma mulher seja massacrada por ser direta, por ser determinada, por falar de cabeça erguida, por se impor? Por que as atitudes de participantes como Eslovênia, que tem a mesma intensidade, não são vistas na mesma proporção? Por que Natália é tratada como uma "mulher feita", enquanto Jade e Eslovênia são abraçadas pelo pacto coletivo que as coloca no lugar seguro de " são apenas meninas"?

Esses questionamentos pipocaram na minha cabeça e desencadearam um entendimento tão doloroso de que, embora estejamos rumando para uma equidade racial e de gênero, os abismos que ainda nos separam são gigantescos.


Ainda somos levadas à exaustão, tomamos porrada atrás de porrada quando constantemente somos colocadas em estereótipos que dão preguiça de tão descarados.

As perguntas que ficam na minha cabeça são: Por que a dor da mulher preta (e de tantas outras irmãs minorizadas, como as indígenas, as trans, lésbicas, em situação de vulnerabilidade social) ainda são minimizadas? Por que ainda precisamos frisar a importância do pensamento interseccional se o feminismo é para todas? Por que ainda estamos na base da pirâmide social que nos desumaniza constantemente e nos coloca no escrutínio da mulata tipo exportação ou da preta raivosa ou da preta (o) escandalosa, "engraçada"?

Por que ainda toleramos o complexo de sinhá que é presente em muitas mulheres brancas que, embora se digam feministas, não toleram a autonomia de uma mulher preta.

Por que ainda somos sexualizadas o tempo todo e temos o amor relegado à nós?

Essa negação ao amor foi outro episódio triste que foi televisionado quando Lucas, que desde o início do programa demonstrou interesse em Natália, beijou outra participante. Ouvi de muitas pessoas que "ninguém é obrigado a gostar de ninguém", "Ele fica com quiser", " Ela está sendo recalcada". Mas não! Não é recalque, é dor, é abandono, é o amor mais uma vez sendo negado à nós. Arrisco afirmar que, não fossem as inúmeras câmeras filmando tudo, Lucas teria ficando com Natália na penumbra, longe do olhar do público, longe de precisar assumir a relação, a empurrando para aquele lugar que a sociedade entende como "aceitável" para uma mulher preta: A cama, as sombras, o subalterno.

E aí entra, na minha humilde opinião, o problema do feminismo "ter sido pensado" como um movimento de mulheres brancas, instruídas e de classe média, tendo em vista que, somente após a década de 80 os relativismos do movimento começaram a ser pensados e as pautas de outros grupos passaram a ser debatidas.

Precisamos encontrar uma maneira de trazer o debate racial para dentro desse movimento tido como macro, mas que ainda segrega e condena as mulheres negras. Não podemos mais admitir que essas agressões sigam se perpetuando. É como eu costumo dizer " até onde chega o seu feminismo"?

É de suma importância que tenhamos o entendimento de que o racismo é um problema que os brancos têm que reconhecer e resolver. E que para o machismo perder seu protagonismo, é necessária a conscientização de homens no movimento feminista, bem como que as mulheres cis e brancas revejam seus privilégios que sim, são mínimos em relação aos homens, mas, infelizmente, ainda gigantes em relação a nós, mulher negras.

Até esse dia chegar, nós seguiremos aqui, no pé da pirâmide, sem conseguir respirar! Aliás, há séculos seguimos com um nó na garganta, com uma sensação de inadequação, de não pertencimento dentro do país que concentra a maior população negra fora do continente africano, vejam vocês a ironia.

Precisamos respirar, precisamos deixar a guerreira de lado e sim, PRECISAMOS TER O DIREITO DE AMAR E SER AMADA.

Para Natália (e todas nós):

Natália, queria ter podido te abraçar e secar suas lágrimas que foram encobertas pelo banho de água gelada que você levou. Queria te dizer que sua dor também é minha dor e que sua coragem de ser e de pertencer emociona.

Vi você dizer outro dia que queria ser você e que não voltaria para os seus silenciamentos. Eu levei isso como um mantra pra mim mesma.

E o meu desejo pra mim, pra você e pra todas as meninas negras que sim, estão se sentindo representadas por essa frente feminina, diversa e negra formada lindamente por você, Lina e Jessi, é que possamos romper com as barreiras dos silenciamentos impostos a nós desde que o mundo é mundo. Eu desejo águas como as que te humilharam, mas, desta vez, que elas sejam límpidas e doces como as águas de Osun.

Desejo uma geração de mulheres pretas livres, amando e sendo amadas e que não sejamos mais unidas pela dor e sim pelo amor.

Axé e até a próxima, irmãs!


Por Amanda Alves Rodrigues






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