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Mulheres sem nome

Marlene Neves Strey

Oito de março é um dia em que quase todo o mundo se lembra das mulheres. Algumas ganham parabéns e tapinhas nas costas, algumas flores, outras bombons. Nada contra ser lembrada, nem ganhar presentes. Mas sempre é bom lembrar que esse dia – oito de março – é um dia para recordar todas as barbaridades que foram cometidas contra as mulheres ao longo da história e tudo aquilo que ainda falta fazer para que realmente homens e mulheres tenham os mesmos direitos e deveres. Não só na Constituição e nas leis, mas também no dia-a-dia, em casa, no trabalho, na vida pública e privada.

Desde que o ano de 2019 começou, o número de feminicídios tem sido muito elevado e constante. Sabemos os nomes dessas mulheres assassinadas e daquelas que conseguiram escapar da morte, embora muito feridas, porque aparecem nos noticiários das rádios, dos jornais, da televisão e na internet. Mas eu fico pensando em todas aquelas que sofrem injúrias, mal-tratos, abandono e negligência no anonimato, ou seja, ninguém fica sabendo delas fora de seu círculo pessoal próximo. E às vezes, nem isso.

Escrevo aqui sobre essas mulheres sem nome, pois existe uma que não me sai da cabeça desde que topei com ela muitos anos atrás. Eu dormia profundamente quando um som me acordou. Ainda sonolenta, eu não me dava conta de que som era aquele. Percebi que vinha da rua e corri para a janela. Nesse momento, apareceu minha filha que também havia sido despertada pelo som e nós duas procuramos ver na penumbra da madrugada o que estava acontecendo. Eu tardei em identificar a origem dos gritos e lamentos. Minha filha logo apontou para o outro lado da rua. Forçando a vista, enxerguei um vulto encolhido, meio escondido por uma árvore.

Minha filha e eu descemos até a rua. Nenhuma outra luz se acendeu nos edifícios ao redor. Fomos até onde a pessoa estava e ela correu para o outro lado, para a frente de nosso edifício, de onde havíamos saído. Voltamos e tentamos falar com a mulher. Ela só gemia e gritava. Estava só de calcinha e soutien, de pés descalços e uma bolsa grande a que se agarrava em desespero. Parecia de meia idade. Não sei se envelhecida pelo passar dos anos ou pelas dificuldades da vida. Não conseguimos que nos dissesse alguma coisa. Fazia frio e ela estava quase nua. Minha filha tinha subido ao nosso apartamento para chamar uma ambulância. Pedi que trouxesse uma manta para abrigar a mulher. Nesse ínterim uma vizinha do edifício ao lado apareceu e também tentou falar com ela. E ela só gemendo e gritando. Quando minha filha voltou com a coberta, a vizinha foi em busca de algo quente para ela beber. Enfim, foi um longo tempo em que tentamos, mas não conseguimos nos comunicar com a mulher. Quando já estava mais claro, tentando cobri-la para protegê-la do frio, percebi que suas pernas estavam queimadas, com tiras de pele penduradas em diversos lugares. Só então pude avaliar a dor que ela devia estar sentindo. Suas pernas estavam horríveis. Seus gritos lancinantes eram agora perfeitamente compreensíveis. Impotentes, nós telefonamos várias vezes pedindo uma ambulância, mas ela não vinha. Somente depois de muitas tentativas, nos disseram que a ambulância só viria se fosse chamada pela Brigada Militar. E a Brigada não aparecia.

Em certo momento apareceram dois homens, com aspecto de trabalhadores da construção civil. Um mais velho e um mais moço. O senhor mais velho parou e ficou também tentando consolar a mulher e fazer com que ela falasse alguma coisa, mas seus esforços também foram infrutíferos. Mas ele não foi embora. O homem mais moço chamava e dizia que iriam se atrasar para o trabalho, mas ele não arredou o pé.

Finalmente o carro da Brigada Militar apareceu, para nosso alívio. Os dois homens se despediram e desejaram sorte. A vizinha, minha filha e eu explicamos a situação e pedimos que solicitassem a ambulância, pois a mulher parecia estar perdendo rapidamente as forças. Os policiais fizeram isso e tentaram conversar com a mulher. Eles foram gentis e bondosos, mas também não conseguiram muita coisa. Eles pediram sua bolsa e a vasculharam buscando um documento de identidade. Não consigo lembrar se ela tinha ou não documentos, pois a ambulância chegou. Em questão de minutos os enfermeiros a examinaram, tiraram a coberta de suas costas e a levaram para dentro da ambulância. Mais alguns segundos e saíram a toda velocidade.

Perguntei aos policiais se eu poderia ir ao Pronto Socorro ver se podia fazer algo por ela, mas me disseram que o serviço social do hospital tomariam conta dela e fariam o que fosse necessário para que ela ficasse bem e fosse encaminhada à sua família – se ela tivesse uma. Eu não precisava me preocupar disseram eles. Ambivalente, agradeci a eles. Nós três, a vizinha, minha filha e eu, todas de pijama, roupão e pantufas, nos olhamos desanimadas e voltamos para nossas casas. Já estava dia claro e eu tinha que me arrumar para ir trabalhar.

Eu fiquei sem saber quem era aquela mulher. Ela continuou sem nome para mim. Eu não fui ao hospital tentar saber algo dela. Eu me disse que não era parente e não me deixariam vê-la. Nem sequer sabia seu nome. Foram desculpas que eu me dei obviamente, para acalmar minha consciência. Os anos passaram e ela não saiu da minha cabeça. Quem era ela? Quem tinha feito aquilo com ela? Tinha família? Era sozinha? Como tinha chegado ali na minha rua? Será que tinha gritado muito antes de eu acordar? O que tinha sido dela depois que a ambulância a levou? Sempre que leio ou ouço a expressão “ninguém solta a mão de ninguém”, eu me lembro dela com culpa e arrependimento, pois eu soltei sua mão e a deixei ir sozinha na ambulância, com aqueles profissionais aparentemente eficientes, mas tão frios quanto aquele amanhecer.

Neste oito de março, quero homenagear todas as mulheres sem nome que sofrem, de queimaduras, ou dores da alma. Que encontrem alguém para segurar suas mãos, que as ajudem a se defender, que estejam ao seu lado buscando uma solução para seus problemas.

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