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Hair Love - A história do meu cabelo



Aqui, lavando os meus cabelos que voltaram a sua forma natural, viajei pra um tempo mais leve e farto. Um tempo em que tudo parecia gigante, para uma criança e, ao mesmo tempo, tão mais fácil e reconfortante.


Nesse ritual de cuidar de mim, lembrei de quando ainda bem pequena eu era cuidada pela minha mãe, que transformava os nossos sábados em um dia dedicado aos cuidados com a beleza.


- Obrigado pela primeira lição sobre autocuidado, mãe.


Mas, como na nossa família as coisas não seguiam um roteiro já estabelecido, tenho que dizer que meu pai faz parte de muitas lembranças minhas e de todo esse ritual de autocuidado. Era ele, na maior parte do tempo, que cuidava dos meus cabelos.

Lembro que sempre fui a guria do cabelão. Não à toa, meus pais me chamavam de ' Leoazinha'. Em casa eu era incentivada a amar os meus cabelos grossos e volumosos, mas na rua a coisa era diferente.

Meu pai, talvez contrariando o esterótipo do homem negro durão, era quem mais incitava a minha autocofiança em todos os aspectos, mas com relação ao meu cabelo ele tinha uma motivação a mais.

- Talvez, através de mim, ele quisesse curar suas dores.


Lembro de uma situação em que, após insistir muito para ir com os cabelos soltos para a escola, voltei arrasada e com dores que até hoje ecoam aqui dentro. Ocorre que num momento do dia, um colega grudou um chiclete no meu cabelo. Todos viram, riram, mas ninguém me alertou.

Até que em algum momento percebi o que tinha acontecido. Até hoje, quando fecho os olhos, lembro da sensação de sufocamento. Pra minha sorte, eu tive ali, naquele abismo, minha primeira lição sobre representatividade.


Tive essa lição na figura da minha primeira ( e uma das poucas) professoras negras. O nome dela era Hilda. Hilda era uma mulher miúda, mas era gigante pra mim. Hilda também tinha a pele escura como a minha e cabelos crespos como os meus. Hilda, ao contrário de mim, já estava calejada e sabia como lidar com situações daquele tipo.

Naquele banheiro, enquanto a professora Hilda tirava o chiclete do meu cabelo com um pente fininho, entendi que aquele cabelão idolatrado pelos meus pais em casa não era visto da mesma forma pro resto do mundo.


Meu pai, ao me ver pedir pra trançar meu cabelo de novo, me disse que coisas assim iriam acontecer, mas que eu nunca deveria me enxergar da forma como o mundo enxergava. Ele me sentou entre suas pernas, trançou meu cabelo por horas e me fez sentir reconfortada - e linda - .

Vivi a infância inteira amarrada como os meus cabelos.

Os anos se passaram eu me transformei numa adolescente " insolente" como dizia a minha avó ( risos). Na minha definição, eu criei uma casca um pouco mais dura, resultado de anos e anos de apelidos com base na minha pele, nas minhas pernas magrelas ou no meu cabelo.

Ali pelos 15 anos decidi não prender mais o meu cabelo. Passei anos com ele solto porque aquele cabelo solto significava tudo pra mim.

A história do meu cabelo ( e provavelmente de tantas gurias negras) tem mil nuances. Na infância, sem muitos produtos pro meu tipo de cabelo, minha mãe usava uma espécie de alisante, porque talvez pra ela fosse mais fácil tornar o meu cabelo mais "aceitável". Eu sei que ela só queria me proteger.


Depois, ali pelos 10 anos, passei pela minha primeira transição capilar e cortei. Recorri ao uso de tranças para passar por esse período. Dois anos depois, tirei as minhas tranças e vi aquela juba ali, me dando um olá.

Durante anos ela foi minha companheira, mas não posso negar que muitas vezes passei por situações dolorosas por causa dela. Recorri a um relaxamento para diminuir o volume. Pra minha tristeza, a tentativa de me encaixar de novo, levou embora meus cachos e o volume que era um vilão pra mim. Mais uma vez, voltei pro alisado. Anos se passaram e eu ali, refém de um secador e de uma chapinha, presa de novo, do jeito que me sentia lá pelos 7 anos de idade.

E então veio a pandemia e com ela eu mudei, me reinventei e renasci. Renasci mais forte e mais otimista. Renasci mais sensível às coisas boas e maravilhosas da vida. O que incluiu o meu cabelo.

Ele ressurgiu lindo, volumoso e crespo. E eu ali, olhando aqueles fios brotando diante de toda a adversidade, senti que mais uma vez era um novo e gratificante processo de recomeçar.

Foi e tem sido lindo, mas esse processo também me trouxe feridas que eu achei que estavam cicatrizadas. Engano meu!

O meu cabelo natural me trouxe olhares, sussurros e perguntas como " Eu gostava do teu cabelo liso, por que mudou"?.

A sensação que eu tive foi que pela primeira vez as pessoas me viram como uma mulher negra genuína, não como a versão estereotipada - ou aceitável - criada em seu imaginário. Talvez agora eu tenha me tornado negra demais àqueles olhos que se sentiram insultados pelo simples fato de eu ter retornado com os meus lindos cabelos crespos.

Descobriram - me negra após anos de convivência. Foi como entrar num lugar novo e ser observada como algo exótico, beirando ao abominável.

23 anos após o incidente da escola me vi ali, sentada num banheiro, com o coração apertado e uma vontade absurda de sentar entre as pernas do meu pai e fugir daquele mundo que continuava sendo cruel. Mas, ao contrário do que aconteceu antes, eu entendi que eu precisava me salvar e salvar aquela minha versão de 7 anos. Eu precisava nos orgulhar e ostentar aquela cabeleira volumosa, grande e crespa.

Um adendo:


Obrigado Bianca Santana pela obra incrível que é " Quando me descobri negra" e aos criadores do filme Hair Love. Foi um resgate de duas meninas... Uma de 7 anos de idade e uma de 30 anos.

Tem aquela música da Sandra de Sá que é um hino para nós negros. " Olhos coloridos". Um trecho em especial me fez refletir sobre como as camadas do racismo que é estrutural no nosso país diminui e destrói tantas meninas e mulheres como eu, que precisam passar por um vida inteira de reconstruções para terem o simples direito de serem/se reconhecerem como belas, dentro de todas as características que compõem sua etnia.

Nesse momento eu só queria dizer pra guriazinha que eu fui anos atrás e para todas as gurias/mulheres negras, conhecidas e desconhecidas, que existe muita potência em ser quem somos. O meu ( o nosso) cabelo crespo é um ato político, de amor e de muita força.

Até as próximas irmãs.

Por Amanda Alves Rodrigues


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