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Eutanásia – Ofensa à Vida, ou Direito a morrer com Dignidade (?!)

A morte é talvez, a única indelével certeza que se tem na vida. De todas nossas idiossincrasias, e indagações, nada se refere a perpétua presença da morte. Dela ninguém ousa duvidar, dela não há escapatória. Tal receio, naturalmente, afasta o debate, e é notório, e quase perdoável, que seja dessa forma. Ocorre que fazendo parte da vida, a morte, diz respeito também a si, os direitos que acolhem a vida. Desta forma, o processo do fim da vida física, propõe sejam evidenciados, e porque não dizer, pré-determinados, como desejamos ser tratados diante de processos dolorosos de fim de vida, quando se é acometido por doença terminal ou fatalmente degenerativa. Tal é a importância de que seja debatido, e estudados os processos que se impõe como alternativas que se revestem de dignidade e conforto, neste momento tão importante, quanto um nascimento, que é a morte.

Podemos escolher, neste caso tutelados por nossa genitora, como vamos nascer, porquê, vez capacitados, não podemos escolher acerca da forma de recebermos a morte, quando ela, a vida, de forma integral, já nos abandonou quase totalmente, ou está prestes a fazê-lo?

“A morte era o desenlace necessário de toda a vida, que cada um de nós estava em dívida, em suma, que a morte era natural, indiscutível e inevitável. Na realidade, porém, costumávamos comportar-nos como se fosse de outro modo. Temos uma tendência patente para prescindir da morte, para eliminá-la da vida. Tentávamos silenciá-la; temos até o provérbio: pensamos em algo como na morte. Como na própria, claro está! A morte própria, é pois, inimaginável, e todas as vezes que tentamos [fazer dela uma ideia] podemos observar que, em rigor, permanecemos sempre como espectadores”.1

A eutanásia atravessa séculos carregando a celeuma acerca da sua autonomia e (i)legalidade. Embora alguns estudiosos reputem a terminologia “eutanásia” a Francis Bacon, e outros, ao historiador inglês, W.E.H. Lecky em 1869, como indicam Antônio José dos Santos Lopes de Brito e José Manuel Subtil Lopes Rijo, na sua obra Estudo Jurídico da Eutanásia em Portugal- Direito sobre a vida ou direito de viver? 2

Platão na sua A Republica já defendia a Eutanásia:

“- Portanto, estabelecerás na cidade médicos e juízes (…) que hão-de tratar os que forem bem constituídos de corpo e de alma, deixarão morrer os que fisicamente não estiverem nessas

condições e mandarão matar os que forem mal formados e incuráveis espiritualmente.

– Parece-me que é o melhor, quer para os próprios pacientes, quer para a cidade.”

(…)

“Estabelecerás no Estado uma disciplina e uma jurisprudência que se limite a cuidar dos cidadãos sãos de corpo e de alma; deixar-se-ão morrer aqueles que não sejam sãos de corpo”.3

A palavra “eutanásia” é de origem grega, e se compõe de “eu” que significa “boa”, e “thanatus” que se traduz por “morte”, literalmente, “boa morte”. No decorrer da história muitas foram suas designações, o que entendemos, seja reflexo daqueles momentos históricos, contextualizando-se os valores políticos e culturais de cada época. Neste trabalho será abordada a eutanásia classificada pelo Professor Jimenez de Asúa4 como “eutanásia libertadora”. Esta está baseada no pleito que realiza, o paciente portador de doença incurável ou fatal, submetido a extremo sofrimento.

No espectro da eutanásia libertadora, podemos distinguir ainda a eutanásia passiva ou negativa, aquela em que há omissão de ajuda profissional médica de qualquer natureza, para manter o paciente em estágio terminal, vivo; e a eutanásia ativa ou positiva, aquela em que ocorre ação ou ato para provocar o óbito do paciente terminal, fadado a extremo sofrimento, para que ocorra a morte sem sofrimento e sem dor neste paciente. Ambas se designam especificamente com fins misericordiosos.

A eutanásia passiva ou negativa, divide-se ainda, em Ortotanásia e Distanásia.

Distanásia: Do grego “dis” (algo mais), e “thanatus” (morte), é o prolongamento da vida do paciente, a custas do sofrimento deste paciente. No meio médico, tais prolongamentos/paliativos” se denomina, de “futilidades terapêuticas”, ou seja, o médico utiliza recursos extraordinários como o objetivo de prolongar a vida do paciente, mas não dá qualidade de vida ao paciente: promove-se a vida como valor máximo a ser defendido, mas não a qualidade de vida, deste “viver”.

Ortotanásia: Do grego “orthos” (reto), e “thanatus” (morte), é a morte no tempo correto sem interferências extraordinárias; a idéia é não apressar, nem retardar o processo da morte, mas buscar a qualidade de vida para aquela pessoa que está em fase de doença terminal.

Atualmente o termo eutanásia vem sendo associado diretamente a Ortotanásia, dado seu caráter essencialmente piedoso, e que objetiva a morte da forma mais natural e humanitária.

Não obstante o caráter essencialmente piedoso da eutanásia libertadora, Eutanásia significa morte, e este é um assunto para qual não fomos preparados para enfrentar. Sendo a morte a ofensa letal à vida, e esta, o bem maior e direito fundamental de todos, atentar contra ela, ou de qualquer forma, ofendê-la, é ato tipificado como crime. O homicídio, é a tipificação criminal da dizimação da vida de alguém contra a sua vontade, o que desrespeita o ordenamento jurídico, porque infringe a lei, desrespeita a quem é tirado a vida como pessoa, e desrespeita às leis divinas porque para a Igreja Católica, assim como para os Judeus, e perante os Protestantes, o homicídio representa a negação da soberania de Deus, já que somente à Ele, é dado o poder de retirar a vida.

As bases religiosas que revestem a vida de substantivo divino, onde o único outorgado a pôr termo, é Deus, tiveram definitivo papel na construção do teor criminal do homicídio, bem como por consequência, diante de qualquer possibilidade de dizimação de uma vida, mesmo em casos de eutanásia.

Estão em desacordo, e tem manifestado repudio a Eutanásia, a Igreja Católica Romana, Igreja Luterana e Episcopal, as religiões Evangélicas e as Fundamentalistas, e os Hindus, de igual forma. Há alguma flexibilização acerca da Eutanásia e Suicídio assistido, pelos Metodistas, pelos Judeus, na religião Islâmica, já os Budistas, aceitam a eutanásia integralmente, por entenderem que à vida, o sofrimento não traz nenhum valor utilitário, motivo pelo qual, é totalmente descartável. A Ordem Espírita Kardecista, repudia veementemente tanto a Eutanásia, quanto qualquer forma de interromper a vida, pois entende, que o sofrimento não só é a essência da evolução do ser, quanto, é a consequência natural dos atos daquela pessoa em uma suposta “vida passada”, e que, portanto, somente vindo a experimentar o sofrimento, se purifica, evolui como espírito.

Sendo a vida, a base de tudo, e sobre onde todas as coisas são construídas, seja materialmente, seja espiritualmente, considerando que “Deus” concedeu-a como presente ao homem, porque ama-o acima de tudo, é inevitável questionarmos, o que é vida. E ainda, concedida essa vida, por misericórdia desse “Deus”, é linear, deduzirmos que a criação da vida, se deu por ato misericordioso, e sendo assim, seria curial associarmos a vida, à misericórdia. Dizer uma vida misericordiosa, é dizer uma vida plena, especificamente no que tange à saúde no sentido de dar-lhe integralidade. Por óbvio que aqui não se trata de refutar as doenças que não são terminativas, mas sim, daquelas que acorrem fatalmente às pessoas, ou daqueles estados em que ausentes as tecnológicas da medicina, não haveria mais vida orgânica.

Para a ciência um ser vivo é algo que atenda as definições fisiológicas, metabólicas, bioquímicas ou biomoleculares, genéticas e termodinâmicas, no contexto de funções vitais, pois não há um conceito terminativo do que seja vida. Para além da definição biológica, o conceito de vida é amplo, e inalcançável. Há conceitos que serão dirimidos no corpo do presente trabalho, como as várias visões do que seria Vida, quais sejam, o

conceito filosófico, moral, ético, social, histórico; sem prejuízo, lançamos numa dessas variantes a licença poética da canção, “O que é o que é?”, de autoria e interpretação de Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior, o conhecido Gonzaguinha:

“(…)

Eu fico com a pureza das respostas das crianças: É a vida! É bonita e é bonita! Viver e não ter a vergonha de ser feliz, Cantar, A beleza de ser um eterno aprendiz Eu sei Que a vida devia ser bem melhor e será, Mas isso não impede que eu repita: É bonita, é bonita e é bonita!

(…)”

É necessário para que possamos entender o conceito mais amplo de vida, o enfrentamento do que vem a ser a morte. Da mesma forma, como ocorre com a questão do conceito do que é Vida, definir a morte, nem mesmo para a comunidade médica, é tarefa fácil. Tanto assim, que em 1968, no Estados Unidos da América, foi criado o Committe Ad hoc5 da Faculdade de Medicina de Harvard, com o objetivo de estabelecer os critérios de morte cerebral, mas somente em 1981, com a criação da President’s Commission for the study of Ethical Problems a UDDA (Uniform Determination of Death Act)6, donde restaram determinados dois critérios para estabelecer a morte: 1. Cessação irreversível da função respiratória e circulatória e, 2. cessação irreversível de todas as funções de todo o encéfalo incluindo o tronco. Assim, Cristina Lima, conceitua as três formas de determinação da morte de um indivíduo: “Morte Cortical Conceito: Perda do que é significativo para a natureza do homem, ou seja a consciência e a cognição e, ainda para alguns, a capacidade social de interagir; Morte do tronco cerebral. Conceito: Morte é a perda irreversível da consciência, associada à perda da respiração. Segundo estes autores, à morte do tronco cerebral segue-se inevitavelmente a assistolia (paragem cardíaca); e, Morte encefálica. Conceito: Paragem irreversível do funcionamento do organismo como um todo, sendo o todo maior que a soma das partes.”

O que se constata é que, tanto as definições de vida, quanto as de morte, se relativizam, mormente, quando depararmo-nos com a singularidade da dignidade da pessoa humana, e o que isso significa para cada pessoa. As suas concepções, sociais, ideológicas, religiosas, espirituais, e até mesmo práticas.

Como explicar que um homem como Christopher Reeve7, que ironicamente simbolizou nas telas de Cinema, O “Super homem”, tenha optado por acreditar piamente na sua recuperação por meio das células tronco, mesmo diante do irreversível quadro de tetraplegia, o que o levou ao estado de total imobilidade, com exceção da capacidade de falar, havendo resistido somente por 9 anos, vindo a falecer em 2004, aos 52 anos de idade, por insuficiência respiratória decorrente das complicações do seu estado, e em contra partida, noutro continente, o homem representando por Javier Barden, no filme Mar a dentro, Ramón Sampedro8, um pescador espanhol que ficou tetraplégico como o Super Homem, permaneceu 29 anos lutando diuturnamente com o Governo Espanhol pelo direito de realizar a Eutanásia ou ao Suicídio Assistido?

Não há como adentrar nesse terreno, sem considerar o insuperável sentido do que é vida e morte para cada um de nós. As motivações inalcançáveis, e por isso, tão personalíssimas, como se fossem uma impressão digital, únicas, não podem e nem devem, dado o sistema normativo que dá garantias fundamentais de viver com dignidade, passar desapercebido e ignorado por este mesmo sistema.

Mas até que ponto o “estado regulador ( leis e normas)” pode e deve adentrar nesta seara tão delicada, quanto essencial, que somente diz respeito a cada pessoa? Para tentarmos responder a esta questão, cabal, entendamos o que é a dignidade da pessoa humana em seu sentido Constitucional. É de ressaltar-se primeiramente, que a dignidade da pessoa humana, é antes de direito fundamental, Princípio Constitucional, conforme assevera Ingo Wolfgang Sarlet:

“(…) Igualmente, percebe-se, desde logo, que boa parte dos direitos sociais radica tanto no princípio da dignidade da pessoa humana (saúde, educação, etc.), quanto nos princípios que, entre nós, consagram o Estado social de Direito. ”9

A dignidade da pessoa humana, como percebemos, se vincula estreitamente, quase como uma colagem, ao sentido de justiça, à sensação de pertencimento coletivo que almeja a justiça como um ideal de todos e para todos, e talvez, neste exato sentido de acolhimento de todos por todos, rumo a justiça, é que resida a necessidade de que cada um deve ser enxergado, de forma singular, peculiar, e respeitado pelas suas escolhas.

A considerar a vinculação do dever de cuidado do Estado, com a dignidade da pessoa humana como direito e princípio, e diante de pessoa em estado de extremado sofrimento em face de doença terminal, parece fazer todo o sentido que justamente sob o manto deste princípio, é que se deva permitir em caso concreto a ser analisado, a permissibilidade da eutanásia libertadora, como ato supremo desta dignidade. Muitas são as considerações a serem feitas ainda, acerca do limite deste Estado regulador na vida privada da pessoa humana neste sentido, sob pena deste Estado regulador atuar em franca violação à dignidade da pessoa humana.

Singra Macedo

Rua Fernando Gomes, 128 conj. 901, Bairro Moinhos de Vento.

Porto Alegre, RS

Fone: 51 3237-0684

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