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Em busca de mim!


“ Em que momento houve essa ruptura tão grande, que eu carrego até agora? Como eu posso me curar e seguir adiante?”

Naquela madrugada, enquanto todos dormiam, eu lia compulsivamente a minha bíblia sagrada (‘Em busca de mim’, da incrível Viola Davis!) e esses questionamentos surgiram na minha cabeça... Pensei comigo mesma que queria dizer tudo o que eu sei agora para aquela garotinha de 9/10 anos que de um dia para o outro descobriu que o seu mundo cor de rosa tinha nuances cinzas.

Eu fechei os meus olhos e consegui voltar ao momento fatídico, no qual eu me quebrei em mil pedacinhos, engoli o choro e chorei para dentro “como uma vencedora” (thanks, mami!) por anos a fio. No fundo, eu nunca pensei que foi naquele momento que eu abandonei aquela garotinha e vesti uma versão nova, não necessariamente melhor, mas uma versão mais ríspida de mim, mais brava, mais violenta, mais raivosa.

Lembro de sentir tanta raiva nos anos que se passaram que eu nem sabia como manifestar o que eu estava sentindo. Afinal, “ o mundo não tinha acabado, nós apenas estamos nos divorciando” foi o que mamãe nos disse enquanto nós víamos nosso pai entrar naquele carro lotado de malas e caixas.

Daquele momento em diante algo virou dentro de mim, mas de uma forma obscura e negativa. Eu lembro de olhar para todos com tanta desconfiança e fúria, achava "ridículo" que meus primos ainda tivessem os pais casados, sentia vontade de fazer todos a minha volta provarem um pouquinho do que se passava comigo... Eu não sabia, ali pelos 10 anos, como dizer que no fundo eu só estava magoada e decepcionada.

Eu sempre tive no meu pai a figura do protetor, do rei do nosso império. Afinal, ele sempre se referiu a mim e a mamãe como sua princesa e sua rainha, respectivamente. Eu cresci olhando para aquele cara grande e fortão, imaginando que ele nunca estaria longe, que nada no mundo poderia me machucar enquanto ele estivesse comigo... O engraçado disso tudo é que foi justamente ele a pessoa que mais me magoou nessa vida.

Sempre reflito dentro de mim e tento dissociar a infidelidade dele da nossa relação como pai e filha, busco entender os motivos reais que os levou até o divórcio e tento internalizar dentro de mim que aquilo era sobre eles e não sobre mim ou meu irmão.

Acontece que inevitavelmente aquele fantasma me seguiu por todos esses anos, me assombrou e se impregnou em mim. Ele virou meu fantasma de estimação e seguimos juntos desde então. A terapia me ajudou a entender que eu absorvi um peso que nunca foi meu, que toda a minha raiva, medo, desconfiança, são sentimentos orgânicos e que se acumularam nesses anos todos. Quem mais sofreu nisso tudo? Quem mais se machucou?

Então, nos últimos anos eu iniciei essa busca por mim mesma, saindo desesperada em busca de respostas, em busca de um sentido pra minha existência. Sabe o que eu descobri? Que na verdade a busca sempre foi por aquela minha versão de 10 anos, que foi abandonada por mim lá atrás, naquele dia em que eu olhei pra nossa nova configuração de família e achei que tinha que ser a irmã mais velha, que tinha que ser a amiga que mamãe precisava, que tinha que ser alguém que segurasse as pontas. Eu me abandonei naquele momento e esse abandono reverberou dentro de mim por todos esses anos.

Não foi o divórcio, não foi a sensação de ter sido abandonada pelo meu pai. Não foi nada disso. Fui eu que esqueci de olhar pra minha Eu de 10 anos com amor, empatia e respeito. Eu simplesmente fui deixando-a para trás a cada dia, mês e ano.

- Eu precisava nos resgatar!

E então, a cada página da minha bíblia sagrada, eu sentia as lágrimas brotarem dos meus olhos... Tantas coisas vieram à cabeça, tantos sentimentos que eu nunca busquei entender, tantas perguntas que eu nunca fiz. Eu juro pra vocês que eu pude me ver, na versão de 10 anos, de braços abertos pedindo pra eu voltar para nós.

Essa busca foi tão profunda e tão intensa que me colocou num lugar de choque, de ruptura com coisas que eu trouxe comigo desde aquela época e que na verdade nunca fizeram sentido, nunca foram minhas ou do meu irmão.

Eu quis gritar, quis correr, quis chorar. Eu quis poder voltar no tempo e abraçar aquela Euzinha de 10 anos, que no final das contas sempre buscou esse abraço.

Embora a nossa família fosse repleta de amor, de vozes, histórias e cores, eu acho que eu fui me invisibilizando tanto, ao ponto de ficar invisível não só pra mim, mas para todos que faziam parte do meu mundo. “ A Amanda é tão boazinha". "Amanda é tão educada". "Amanda é uma criança que não incomoda.” Era assim que todos se referiam a mim!

Dia desses eu fiquei pensando em como esses aspectos foram moldando uma personalidade que eu aceitei como minha, mas que no fundo nunca foi. Eu nunca fui revoltada como me taxaram na adolescência, apenas estava assustada e com medo. Nunca fui agressiva ou raivosa, só não sabia como lidar com a minha vulnerabilidade... Também nunca fui boazinha ou super educada, eu simplesmente achava que não podia ficar vulnerável porque eu era uma mulher da família Dias, afinal. Nós não despedaçamos, não choramos “ como Marias coitadas”, essas eram as frases clássicas da minha avó!

Percebem que são coisas que foram absorvidas e que foram integradas a mim sem nunca serem, de fato, parte de mim?

O mais absurdo de tudo isso é que foi preciso perder minha mãe pra eu tirar essa roupa que foi se expandindo dos meus 10 aos 28 anos, pra que eu finalmente pudesse furar essa membrana e respirar!

Ao me olhar no meu espelho, ver meus olhos inchados e vermelhos e a faixa de fios brancos que fica cada vez maior, eu só senti que queria ter sido diferente em tantos sentidos. Por mim e pela minha mãe. Talvez por versões de nós duas que foram se abandonando ao longo dos anos e vestindo membranas cada vez mais difíceis de furar.

Eu queria ter sido outra versão para ela, queria ter sido mais amor e menos batalha. Queria ter sido sua aliada no afeto e não na guerra. Queria ter dançado com ela instintivamente, ao invés de observá-la dançando na nossa sala ( e pela vida). Eu queria tê-la como testemunha do meu caso de amor comigo mesma, queria que ela visse as lágrimas que eu sempre escondi porque eu queria que ela soubesse que eu era tão durona quanto ela e a abuela. Eu queria dizer pra ela que naquele dia nós duas nos abandonamos e adotamos uma persona ingrata e injusta.

Eu queria correr de mãos dadas com ela em busca de mim. Em busca de nós!


Por Amanda Alves Rodrigues

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