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A punição social da mulher encarcerada

A célula familiar e a punição social da mulher encarcerada

Ao Estado cabe a custódia dos cidadãos que se encontram no sistema carcerário, porém o que se vislumbra é um descaso infindável, que se verifica ainda mais evidente quando consideramos o entorno social que circunda a mulher encarcerada; não falemos em saúde, nem em integridade física ou moral, nem em cuidados peculiares que o gênero feminino impõe, mas olhemos agora para os filhos que existem, e aqueles que eventualmente nascerão no ambiente prisional, e dos demais membros da família dessas mulheres.

A mulher encarcerada, hoje representa 5% da população carcerária do Brasil, e dadas as condições do sistema carcerário brasileiro, é exposta a todo tipo de anulação e privação; quase nada resta acerca da integridade do sujeito de direitos que de fato é, e é na esfera pessoal familiar que essa mulher busca o alento de sanidade e afeto, de reconhecer-se ainda como pessoa humana.

No entanto, estudos e registros dão conta que até a mantença da relação familiar, quando há, se torna um verdadeiro calvário para essas mulheres, seja porque para manter-se próxima a residência familiar, abre mão de ser transferida para prisão Feminina, se submetendo assim às chamadas prisões mistas, seja porque, na impossibilidade de realizar tal opção, acaba por ficar em prisão muito afastada do núcleo familiar, dificultando assim o acesso dos parentes que em regra não dispõe de parcos recursos financeiros.

À aquelas que tem filhos, o drama traz redobrado sofrimento, já que não perde a guarda do filho, mas essa fica suspensa até o julgamento definitivo da causa, ou então, se for condenada por sentença da qual não caiba mais recurso por crime cuja pena seja superior a dois anos de prisão. Nesse caso, a guarda do filho menor ficará com o marido, parentes ou com amigos da família. Cumprida a pena e não havendo decisão judicial em sentido contrário, a mãe, volta a ter a guarda e o poder familiar que haviam sido suspensos em razão da condenação. O perfil da mulher encarcerada, denuncia a desestrutura do seu núcleo familiar, e não raras vezes, são mães e chefes de família, ou seja, são responsáveis pelo sustento dos filhos, o seu encarceramento acaba por fragmentar ou mesmo dilacerar este núcleo, que já era originalmente desestruturado pela ausência ou abandono do pai ou companheiro da mãe.

Os filhos de mulheres encarceradas, quando não há o exercício da paternidade responsável, ou não há familiares que se habilitem a mantê-los sob sua guarda, acabam sendo entregues à abrigos judiciais ou orfanatos. Perdem referenciais familiares essências, como o contato com os pais, os familiares, não seria absurdo dizer, que o caminho para perderem sua identidade social, então, se inicia. Não há política pública oficial que ofereça esse suporte de exercício de cidadania, já que manter o único referencial familiar que tem, seria poder visitar a mãe encarcerada. Há um desprendimento, um rompimento doloroso, e que muitas vezes, se torna impossível restabelecer.

Quando há presença paterna antes do encarceramento da mãe, raros são os relacionamentos que se mantém, com a assunção da paternidade responsável frente àqueles filhos que agora ficaram sem a presença materna; reflexo disso é o número substancialmente inferior de percentuais entre homens e mulheres encarceradas que recebem visitas de seus companheiros. Constata-se então que ao ser encarcerado o homem não é abandonado pela sua companheira, o que não ocorre com a mulher. O rompimento ou abandono por parte do parceiro, é uma postura repetida também pelos seus amigos e familiares.

A mulher encarcerada, constata-se, é punida tantas vezes, quanto seja possível; primeiro pela lei, depois pela sociedade, e por último, e da forma mais cruel, pelo seu núcleo familiar, especialmente, quando tem filhos ou venha a ter durante o cárcere.

Se as lutas feministas, que se tornaram também lutas sociais, pela igualdade sob todos os prismas, fora das grades, é ainda um desafio contínuo e diuturno, que sabe-se lá quando desaparecerá por completo, e ocorre à luz do dia, sob todos os holofotes, sob todos os signos, em todas as camadas sociais, não há como nominarmos então, suas condições atrás das grades, longe de todos os olhares e de qualquer atenção.

Não há horizontes promissores no caminho a seguir, na estrada sinuosa da mulher encarcerada. Entra no mundo do crime por portas que se abrem dentro da sua própria casa, na maioria das vezes, assumindo o papel do companheiro que já foi detido ou morto.

Massivamente, não tem qualificação educativa que lhe dê condições de ter “opções” profissionais; fazendo parecer que a o caminho do delito, é o único que lhe seja possível. Assume então o papel integral, mãe e chefe de família. Quando se vê encarcerada, seu mundo que já era deteriorado de sub valores e sub valorações, agora se desfragmenta. Longe dos filhos, e preterida pela família. O único valor que lhe era intrínseco, o de “ser mãe”, agora também já não lhe pertence mais.

Diante de um Estado esclerosado acerca de noções de reinserção social, com um sistema penitenciário empobrecido sob todos os aspectos, e predominantemente, feito para homens, a mulher encarcerada, é submetida além da sua pena legal, ao abandono que a pecha social que agora recai sobre si, – “mulher criminosa/mulher presa/mulher bandida” – causa; o abandono, o estigma, a ausência do companheiro, e dos filhos. Não é possível, após o evento da Constituição de 1988, a Constituição Cidadã, que continuemos a fazer valer as grades que nos separam dessas mulheres.

Encarceradas ou não, todas estamos sob o signo de uma mácula secular, que esconde sob o véu das culturas e costumes, em verdade, preconceito, sexisismo, violência. Ações efetivas que se traduzam em reconhecimento e reestruturação da situação das mulheres encarceradas, lhes sendo proporcionado um sistema prisional digno, com convivência salutar dos filhos, acesso à saúde, educação, e trabalho, precisa se concretizar, sob pena de, para estas mulheres, todo o acervo humano e cidadão, e a vocação social da Constituição Federal, restar completamente esvaziado.

E para nós seres humanos, homens e mulheres, desimporta gênero ou sexo, apenas “ser” pessoa, que não encarcerados fisicamente, resta saber que tipo de comportamento multiplicaremos, e se temos ou não consciência das prisões que nos limitam, porque disso depende tantos outros passos, que não serão dados por nós, mas pelos que virão depois; se multiplicaremos preconceito e indiferença, ou se plantaremos respeito e dignidade, aqui e agora, abolindo definitivamente, estigmas e ranços do machismo e da desigualdade, que insistem em tentar nos manter a todos moralmente, encarcerados.

Por Singra Macedo

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