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‘A mulher Rei’ e o direito à vulnerabilidade da mulher negra!


Fui assistir ao novo filme da incrível Viola Davis cheia de expectativas e com o coração tomado por um sentimento de pertencimento inédito!

Explico: Só nós sabemos como é árdua nossa trajetória de construção identitária quando crescemos cercadas por exemplos de beleza que não se parecem nem um pouco conosco. Ligávamos a TV e víamos as paquitas da Xuxa, Angélica, Eliana, mas nenhuma mulher que nos representasse. Nos jornais, lembro de ter como referências apenas duas jornalistas negras (Glória Maria e Zileide Silva) num mar de tantas outras mulheres brancas. Nos filmes então, a representatividade negra era inexpressiva e quando existia era condicionada a estereótipos racistas e, no caso das mulheres, racistas e misóginos.

E então começamos a perceber um movimento de mudança, de transposição daquilo que um dia foi estabelecido como padrão... Seja comportamental, social ou de beleza. Vimos a sensacional Lupita Nyong'o se tornar referência de moda e de beleza... Vimos as marcas da indústria cosmética, mesmo que tardiamente e a passos de tartaruga, pensarem em produtos voltados para a pele e cabelos negros... Vimos a nossa narrativa ser recontada do ponto de vista afrocêntrico como fez de forma genial Beyoncé no seus trabalhos em Lemonade (2016) e, mais recentemente, Blacks is King (2020).

Vimos o papel da mulher negra ser recontado de outra forma, sem ser atribuído à força e resistência! É quase que um movimento ao encontro do direito de amar e ser amada. Empoderar por meio do afeto e da vulnerabilidade, modificando um pouco a narrativa racista de que somos “ fortes” e “guerreiras” o tempo todo.

Nesse sentido, Viola Davis surge como um farol para mim e tantas meninas/mulheres negras que passaram a se enxergar nela. Desde a sua atuação na aclamada série ‘ How to Get Away with Murder’, na qual deu vida a personagem Annalise Keating, que personificou esse sentimento de pertencimento dentro da sua pluralidade, até a sua atuação como a General Nanisca ( A mulher Rei), Viola tem ressignificado um termo tão conhecido por todos , mas que ainda é novo para as mulheres negras: Vulnerabilidade.

Bell hooks durante toda sua linda jornada aqui na terra nos brindou com um trabalho dedicado ao afeto como arma de militância... Nos últimos 4 anos eu vi na obra de bell hooks uma mentoria, uma nova forma de me ver e de ver as mulheres que fazem parte da minha ancestralidade, observando especificamente a vulnerabilidade, ou melhor, nosso direito à vulnerabilidade como fonte de combustível para nossa militância.

Ao sentar naquela sala de cinema e ver a nossa história contada do nosso ponto de vista pude me ver em cada mulher negra retratada ali... Pude ter uma aula prática da teoria de bell hooks sobre nos empoderarmos por meio do afeto e indo contra a tudo que nos foi renegado.

É como dar um tapa de luva na cara desse racismo estruturado para nos tirar tudo, até o direito de se amar e amar os nossos.

A cada cena da General Nanisca eu via um pedaço diferente da minha mãe... Vi a sua luta, sua performance para ser aquela fortaleza especialmente para mim, pois ela veio de uma geração em que as mulheres, em especial as negras, não podiam demonstrar vulnerabilidade. Mamãe veio de uma família matriarcal, na qual sua mãe, minha avó, teve que lutar contra as mazelas do machismo e do racismo. Elas endureceram sem nem perceber e, por tabela, nos criaram com essa rigidez travestida de força.

Ali, vendo a personagem de Viola, eu pude me transportar para a minha infância e perceber o quanto ela teve que se sacrificar, mesmo sendo aquela figura que transbordava amor e alegria... Mesmo assim, mesmo com toda a sua extravagância, ela precisou renunciar a sua vulnerabilidade porque o mundo não lhe dava trégua e, afinal, ela precisava me criar forte!

Eu chorei compulsivamente vendo aquelas guerreiras Agojies, porque eu pude me ver ali representada, mas também cada uma das minhas ancestrais. Pude entender que a narrativa contada ali não era somente sobre mulheres guerreiras, mas sobre mulheres que apesar de guerreiras conseguiam abraçar sua vulnerabilidade mesmo naquele ambiente inóspito.

Ao final do filme eu entendi que aquela não era uma história somente sobre força, mas sim um filme que serviu para libertar cada mulher negra sentada naquela sala. As lágrimas que caiam dos olhos de Viola Davis, eram as mesmas lágrimas que saltavam dos meus olhos quando me dei conta de que foi preciso muita luta de todas as mulheres que vieram antes de mim para que hoje eu pudesse ser forte, brava, dedicada, mas também assustada e vulnerável!

- Eu queria que todas elas pudessem se desarmar e sentir o peso dos mais de 400 anos de escravidão sair dos seus ombros!

Esse filme, essa narrativa é quase que uma libertação de todas as ancestrais não só pra mim, mas para todas as minhas irmãs negras que carregam o peso de serem um ato político só pelo fato de existir. É como se todas as Yabás nos dissessem para descansar e viver nossa jornada de uma forma mais leve, menos dura, menos performática.

Os diálogos de Viola Davis e Thuso Mbedu, assim como os de Sheila Atim e Lashana Lynch, serviram como uma redenção não só pra mim, mas para minha mãe, minhas avós, tias, primas, afilhadas, amigas. Eu senti que todas fomos libertadas e convidadas a nos perdoar!

Como dito por bell hooks:

“Quando nós, mulheres negras, experimentamos a força transformadora do amor em nossas vidas, assumimos atitudes capazes de alterar completamente as estruturas sociais existentes. (...) Quando conhecemos o amor, quando amamos, é possível enxergar o passado com outros olhos; é possível transformar o presente e sonhar o futuro. Esse é o poder do amor. O amor cura.”

Desejo fortemente que o afeto nos liberte e nos cure! Até a próxima, irmãs!

Por Amanda Alves Rodrigues

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