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Vinda do planeta fome, Elza Soares foi farol para todas nós, mulheres negras, segregadas desde que o mundo é mundo dentro das disparidades de raça e gênero.
Com aquela voz potente, rouca, que rasgava a carne, Elza foi para mim mais do que uma musa inspiradora, foi um norte, uma reza forte, um mantra.
Se eu fechar os olhos, posso lembrar da primeira vez que ouvi ' A Carne' na sua voz... Aquela voz, aqueles olhos puxadinhos como os meus, me atravessaram.
Eu queria - e ainda quero - ser um pouco como ela.
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
Só-só cego não vê
Com sua carne exposta, Elza, marcada por tantas cicatrizes, teve força para entoar sua voz contra o racismo, contra o machismo, contra o classicismo, tão recorrentes no Brasil que voltou a ser o planeta fome.
Mais para frente, entoou sua voz dilacerante contra o etarismo, que se apresentou a ela como mais uma mazela desse sistema patriarcal que tentou, mas não conseguiu silenciar a voz do milênio.
Elza, dentro da sua grandeza, foi, muitas vezes, apequenada pelo racismo que é estrutural e institucional neste país, que é um dos mais letais para as mulheres e, sobretudo, para a população negra. No Brasil que vive sob o espectro míope do mito da democracia racial, a grande musa Elza Soares teve que se provar a todo momento, mesmo com todo o avanço e mesmo com toda a força dos movimentos como o Black Lives Matter, ela, como tantas de nós, ainda precisou se reafirmar, mesmo sendo gigante e atemporal.
Ela não foi a mulata tipo exportação de nenhum sinhô, não foi a negra ardente, mantida em segredo, tão pouco se colocou ou contentou com a subalternidade.
Elza transcendeu e se transformou em estado de espírito, em divindade, em oração para tantas mulheres que, assim como eu, viram nela um resquício da nossa grandiosidade ancestral e do autoamor relegado historicamente a todas nós.
Saiu do planeta fome, venceu uma narrativa que começou de forma abrupta, a obrigando a casar aos 13 anos de idade e a ser mãe com apenas 15 anos. Perdeu filhos, perdeu a identidade, perdeu a voz.
Mas, como a santidade que era, a Rainha Elza se recuperou e trouxe o seu grave rasgado como uma ventania, como as tempestades de Oyá, varrendo toda a opressão e deixando a avenida limpa e linda para ela ( e todas nós) passar.
Ali, no auge da fama, precisou se provar mais uma vez e enfrentar o machismo tão enraizado na nossa cultura que a transformou em vilã por simplesmente amar.
Amar, amor, amou. Elza amou e amou de muitas formas. Nos banhou com amor, com paixão, com vida. Nos ensinou a amar livremente e de todas as formas, idades, sabores.
Renascida das cinzas, como a Fênix que sempre foi, teve que provar seu valor novamente, dialogando com a nossa narrativa diária de autoafirmação. Afinal, não importa quão boa você seja, quão competente e genial seja sua atuação. Ainda assim, terá que se provar capaz. Mas ela foi, ela é.
Ressurgiu como a mulher do fim do mundo, como a personificação das ancestrais, traduzindo os sopros delas como sua última missão. Ao lado de musas da nova geração como Liniker, Elza preparou sua partida abraçada a uma mensagem de aceitação, autoamor e poder.
Deixou sua mensagem para os pseudos machos: Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim!! , se ressignificou e foi nossa versão mais humana de Deus. Sim, Deus é uma mulher preta! Deus é você, rainha Elza.
Como nossa rainha maior desenhou nossos passos para o futuro, desenhou nosso presente e o nosso além... Além daqui, além de nós.
Deixou na avenida seu choro, sua solidão, sua dor. Como uma mãe, nos abraçou e mostrou o caminho. Com sua voz trovão, nos quebrou e depois montou.
Elza se perpetuou como um farol ou como um mantra do autoamor. Elza nos ensinou a ser sol, a ser lua, a ser o suficiente.
A mulher do fim do mundo seguiu firme porque sabia que sua missão aqui era gigante demais para terminar sem um grande final.
Enquanto sua carne sangrava e era inflamada por cascas e mais cascas de feridas fétidas e profundas, ela se renovou e voltou mais linda, mais potente e brilhante, deixando sua "lágrima de samba na ponta dos pés".
A mulher do fim do mundo partiu com apenas um pedido:
Eu quero cantar até o fim
Me deixem cantar até o fim
Até o fim eu vou cantar
Eu vou cantar até o fim
Eu sou mulher do fim do mundo
Eu vou, eu vou cantar, me deixem cantar até o fim
Obrigado Elza por tudo! Seja abraçada por Olorum e siga daí, nos regendo e guiando agora como ancestral.
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