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A importância de deixar doer!

Lembro que ali pelos 11 anos de idade, após muito treino e dedicação ao atletismo, finalmente cheguei ao pódio dos jogos escolares, o JERGS, que era uma espécie de campeonato com várias modalidades, para as escolas estaduais do Estado.

Após me dedicar muito, consegui a medalha de prata, segundo lugar. Apesar de não ter conquistado a medalha de 1º lugar, me sentia uma vencedora, estava em êxtase, eufórica. Lá pelas tantas, uma colega de turma me pediu para ver a medalha que eu tanto ostentava orgulhosa no pescoço. Inocente e sem ver problema algum, emprestei a tal medalha… Ocorre que a menina fugiu com a medalha, o que me deixou desconcertada na ocasião.

Desesperada e em prantos, (como se não fosse recuperara-la), lembro de chorar todo o caminho de volta pra casa, quando tentava entender o ocorrido e como lidar com esse sentimento de perda e frustração.  Minha mãe, talvez no intuito de me consolar e preparar para a vida, me soltou a seguinte frase: “Quem foi que ganhou a medalha? Quem foi a real vencedora? Então enxuga essas lágrimas e chora pra dentro como uma vencedora!”.

Aquela frase ecoou dentro de mim a minha vida toda, mesmo que eu não percebesse, mesmo que supostamente tivesse superado essa situação. Aquelas palavras fortes sempre fizeram parte de mim e sempre gritavam dentro de mim a cada decepção, a cada tristeza, a cada desilusão. Cada vez que eu pensava em ficar triste ou chorar por determinada situação, lembrava dessas palavras proferidas pela minha mãe e travava. Simplesmente me convencia de que eu era a verdadeira campeã e que não deveria desperdiçar minhas lágrimas. Chorei pra dentro como uma vencedora por quase toda a minha vida.

No auge dos meus 27 anos, diante de um dos piores momentos da minha vida que foi a descoberta tardia do câncer em fase terminal da minha mãe, eu não sabia como lidar com a dor que eu sentia. Do dia da sua internação na emergência, quando a médica plantonista me disse que tinha 90% de certeza que era câncer no fígado (o que depois foi comprovado que era na via biliar, pasmem, mais punk ainda!), eu não conseguia sentir a dor. Só tinha em mente que eu tinha que ser uma vencedora, que eu tinha que lidar com tudo aquilo da forma mais prática possível.

Cuidei de tudo nos quase quatro meses que se passaram. Chorei pra dentro como uma vencedora durante todo esse período!

Lembro que quase no final, quando mamãe já sabia que sua partida estava próxima, numa das noites em que dormi com ela, nos olhamos por um momento e ela me disse: “Sempre fomos nós duas não é mesmo?”. Naquele momento, naquela fração de segundos, eu entendi o que ela quis dizer, era uma súplica para que eu me permitisse desaguar. Mas eu não podia, eu não pude!

Mesmo com a notícia da sua partida eu não chorei e não desabei. Eu senti um fio de lágrima correr no meu rosto, naquele gélido hospital, mas lembrei que eu tinha que ser a vencedora daquela época, que não chorou pela perda da medalha e que agora não podia chorar, apenas seguir resolvendo as coisas.

Dias se passaram, semanas se passaram… Meses. E só após nove meses, mesmo que eu tenha ensaiado algumas lágrimas vez por outra, escondida de mim e dos meus sentimentos, pude sentir a minha dor e entender a importância dela.

Eu nunca havia me permitido desaguar, cair em queda livre, chorar sem vergonha, sem pressa. Eu me permiti/ e ainda permito sofrer. Talvez nesse momento, possa parecer confuso para algumas pessoas esse conflito interno. Afinal, como não sofrer em uma situação dessas? Mas a verdade é que a vulnerabilidade é algo ainda visto como tabu, como negativo. Dentro do tipo de criação que eu tive, a vulnerabilidade sempre foi algo pejorativo. Isso não significa que a minha mãe, avó ou tias tenham sido mulheres cruéis e frias. Ao contrário, foram uma verdadeira fornalha de amor, mas também de muita rigidez, força e luta. Talvez esse tenha sido o jeito que elas foram ensinadas a lidar com a dureza da vida, ainda mais sendo mulher, negra e pobre.

Porém, esse legado tem seu lado obscuro e, como consequência, crescemos omitindo nossos sentimentos, nossas emoções, nossa dor. Ninguém nunca nos disse como lidar com a dor, como vivê-la, como entendê-la. Aliás, acho que somos uma geração muito privilegiada porque somos uma das primeiras gerações que podem falar da dor, da vulnerabilidade totalmente desarmada e despida. Somos a primeira geração com essa liberdade de sofrer… Quando penso nisso, sinto muita pena das mulheres que vieram antes de nós, porque elas não podiam se permitir doer, não sabiam nomear suas dores.

Nesse ano eu aprendi que a vulnerabilidade nem sempre é negativa. Conheci a pesquisadora americana Brené Brown, que teve um dos TED’s mais assistidos do mundo, que foi o TED sobre vulnerabilidade. Para Brené, a vulnerabilidade significa a disposição de se expor, de se expressar de uma forma autêntica e franca, de fazer coisas sem garantia, de correr riscos. Segundo ela, quando as pessoas se desarmam e se arriscam a tirar a armadura que as protege, abrem-se também às experiências que trazem propósito e significado às suas vidas.

Nesse sentido, o conceito de vulnerabilidade fez muito sentido pra mim. Eu ressignifiquei muitas coisas que eu tinha como certas. Estreitei meus relacionamentos de uma maneira extraordinária. Aprendi a viver a minha dor (e a entender a dor dos outros), a entender a origem dela, a lidar com ela, quase como um bichinho de estimação. Nesse processo todo, eu entendi o que lá com 11 anos de idade minha quis me dizer. Isto é, na verdade o intuito dela não foi me fazer reprimir meus sentimentos. Ao contrário, ela queria me ensinar a lidar com a dor, com o sentimento de frustração, de perda. Assim como me fez entender o motivo pelo qual aquela minha colega saiu correndo com a tal medalha… Hoje me pego pensando em como ela deve ter se sentido, como foi difícil pra ela lidar com essas emoções desconhecidas por nós, meninas tão novas.

Nesse novo ciclo, cheio de ressignificações, eu aprendi a ressignificar a dor, aprendi a importância do seu espaço, do seu protagonismo na minha vida. Arrisco a dizer que ao viver a minha dor eu me salvei. Salvei a mim mesma a partir do momento em que imergi em mim, me rendi ao que eu sentia e simplesmente chorei (já falamos disso por aqui). Libertar o meu choro foi fundamental nesse meu processo de cura, ainda em andamento, porque ao chorar eu descobri que havia presa em mim uma coleção de dores de estimação e que elas precisavam sair, precisavam ser exorcizadas. Eu não sei se consegui expulsar todas, mas grande parte saiu.

A consequência disso? Eu descobri traços da minha personalidade que eu não conhecia. Descobri que sim, sou uma pessoa sentimental. Descobri que sou afetuosa, que sou mais paciente do que eu imaginava, que não sou tão brava como imaginava, que sou engraçada, boêmia e festeira. Aprendi a valorizar as pequenas coisas da minha vida, como sentar numa sexta-feira a noite com a minha taça de vinho, máscara facial no rosto e a minha batata da latinha cheia de gordura trans e todas essas coisas. Aprendi a demonstrar meu amor para as pessoas que eu amo. Aprendi a aceitar que eu não tenho controle de tudo e que tá tudo bem nisso… Mas acima de tudo, eu aprendi a me aceitar do jeito que eu sou. Aprendi que quem tiver que ficar vai ficar… Assim como quem tiver que sair vai sair, igualzinho as dores de estimação que foram expurgadas.

Mas tudo são flores? Não, na maioria das vezes são espinhos, mas a grande diferença é que agora eu consigo entender o motivo desses espinhos estarem aqui e consigo lidar com eles. A diferença é que agora eu não tenho um exército de dores tão profundas e sombrias que eu nem sequer conhecia, mas que me cutucaram por anos a fio. A diferença é que eu entendi a importância de deixar doer!

Entendam, vocês também, a importância de deixar doer e se permitam renascer mesmo dentro da sua dor. Aprendam a nominá-las, a identificá-las e a expulsá-las (ou ressignficá-las).

Por Amanda Alves Rodrigues

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